Se fosse apresentado numa aula de faculdade de gestão, o documento “Visão Estratégica para o plano de recuperação económica e social de Portugal 2020-2030”, da autoria do consultor António Costa Silva e escrito para dar resposta a um pedido expresso do Primeiro-Ministro de Portugal, cumpriria o essencial da estrutura e regras dos planos estratégicos que se ensinam na academia. Ele fala da missão, da visão, dos eixos estratégicos, dos objetivos, do diagnóstico e dos condicionantes, limitações e oportunidades, tudo bem representado com diagramas esquemáticos e tabelas conclusivas. As conhecidas “buzzwords” da gestão empresarial são recorrentes e repetem-se em todo o relatório, como são os casos de eficiência (30 repetições), mercado (125), competitividade (42), instrumentos (43), gestão (51) e até alavanca (21). Em síntese, o plano de A. Costa Silva recomenda que Portugal avance com programas de investimento em dez eixos de intervenção estratégica que, no essencial, replicam medidas, propostas e recomendações há muito discutidas no país e em organismos internacionais.

O problema do plano de A.Costa Silva é que não se aplica a uma empresa, mas a todo um país. E, neste âmbito, falta-lhe a dimensão política, faltam-lhe as opções sobre posicionamento interno e externo, e uma reflexão autocrítica real e independente sobre os problemas que limitam o crescimento do país.  Neste contexto, existe uma omissão que, estranhamente, o Plano não contempla! A da necessidade de um plano estratégico de combate à corrupção em Portugal.

Em 120 páginas de documento, as palavras corrupção, branqueamento, conflito de interesses, injustiça estão completamente ausentes e as palavras equidade e democracia aparecem apenas uma vez. As recomendações para o setor da Justiça foram relegadas para o último ponto do último capítulo (página 119) e, essencialmente, para alertar para a necessidade do reforço dos mecanismos relacionados com agilização de resolução de litígios fiscais e económicos. E isso é muito pouco e muito estranho! Porque negligencia um problema real do país que, sem uma estratégia de combate determinada, vai continuar a minar qualquer sucesso na implementação de planos estratégicos e de recuperação económica. Um problema que, de acordo com o recente relatório “The Costs of Corruption Across the EU”, de um grupo parlamentar europeu, se estima com um impacto anual negativo de cerca 18,2 mil milhões de euros na economia do país, o equivalente a quase 8% do PIB nacional, sendo um valor superior à despesa anual com todo o sistema nacional de saúde.

Já em 2014, anos antes de vários dos atuais megaprocessos que hoje escandalizam o país, como são os casos BES, Luanda Leaks, Tancos, Lex e outros, já o relatório “Anti-Corruption Report” da Comissão Europeia indicava que 90% dos portugueses concordavam que existia um problema de corrupção generalizada no paíss, que 36% dos portugueses concordavam que a corrupção os afeta diariamente, e que 68% dos portugueses considerava a corrupção como um problema real para o desenvolvimento de negócios em Portugal. Perante este diagnóstico, foram emitidas várias recomendações que se mantêm completamente válidas e pertinentes. Estranhamente, ou não, A. Costa Silva não as valorizou!

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Portugal é uma democracia plena, pluralista, respeitadora dos princípios essenciais do direito internacional e com clara independência do sistema judicial. E isso é muito positivo. No ranking de perceção da corrupção da International Transparency, Portugal ocupa, há cerca de 8 anos, o 30º lugar num ranking de 198 países, o que, não sendo bom, ainda nos coloca nos últimos lugares da 1ª divisão mundial. Mas este é um ranking onde Portugal tem, necessariamente, de melhorar. Há uma relação direta entre a posição deste ranking e o nível de desenvolvimento económico e social dos respetivos países.

O problema de Portugal não é de forma legal, mas de substância comportamental. É sobretudo de mentalidade, cultura, educação para a cidadania e de eficácia e capacidade de funcionamento do sistema judicial. Enquanto continuarmos a aceitar e a considerar como fatalidades normais do funcionamento da nossa economia, o excesso de informalidade e os conflitos de interesses dos negócios, o nepotismo, o abuso de poder e a falta de transparência na gestão da coisa pública, e continuarmos a desvalorizar e a adiar a implementação de uma estratégia nacional de combate à corrupção, que inclua um forte investimento na formação das novas gerações para os princípios fundamentais do Direito e da vivência em democracia, e o reforço da capacidade de ação do sistema judiciário e penal de combate à corrupção, qualquer plano de recuperação para o futuro estará, à partida, condenado ao fracasso.

Kurt Cobain, um dos músicos mais influentes da minha geração disse um dia que “o dever da juventude é desafiar a corrupção”. Ele sabia que a corrupção vicia, desequilibra e prejudica o funcionamento das democracias. É uma doença que faz cair mesmo os corpos mais treinados. Combatê-la é essencial para permitir oportunidades justas para o futuro. E Cobain era um simples músico, não era um gestor conceituado.

Talvez por cortesia institucional para com quem lhe encomendou o trabalho A. Costa Silva tenha optado por não falar do problema da corrupção na sua proposta de plano para o futuro do país. Mas este é um problema que existe e não pode ser ignorado. Ao fazê-lo, A. Costa Silva foi politicamente correto, mas não foi smart. E #istonãoésmart.