Imagina-se normalmente o fim do mundo como uma superprodução. “Alguns,” declarou um poeta, “acham que o mundo vai acabar em fogo.” Versos mais tarde irá concluir que seria suficiente o mundo acabar congelado. Pouco importa no entanto a temperatura: em ambos os casos o mundo iria acabar num acontecimento único, de enorme magnitude.

Estas imaginações explicam-se pelo favor de que o estilo catastrófico goza entre a população. A ideia de um acontecimento de grande magnitude é para a maioria indissociável da ideia de que nada escapa a esse acontecimento; e assim da ideia de que tudo e todos vão ser afectados pelo fim do mundo. As fantasias de inverno nuclear, de verão global, de ajuste de contas com o Anticristo, ou de invasão de marcianos têm em comum a escala enorme a que se propõem. A ideia de alguém ou alguma coisa poder sobreviver é-lhes remota e desagradável.

São também fantasias curiosamente consoladoras. De facto, se o fim do mundo coincidisse com um incêndio de grandes proporções ou com uma invasão de marcianos teríamos a satisfação final de ver que connosco o mundo pereceria, e que ninguém seria tratado de modo diferente. A ideia de suicídio colectivo tem o encanto igualitário de nos fazer abandonar esta vida com um último mau pensamento: o de que a pena que a nós se aplicar se vai aplicar a todos os outros. Consola-nos a ideia de que ninguém se ficará a rir, pelo menos neste mundo. Esta consolação pela catástrofe é característica de muitas actividades humanas: políticas, médicas, ambientais, e astrológicas.

Podemos porém imaginar o fim do mundo de outra maneira. Ocorre-me a seguinte sequência de um filme mudo: numa casa de jantar com uma toalha aos quadrados e uma fruteira, alguém corrige a posição de uma maçã; a maçã cai na mesa; ao voltar a pôr a maçã na fruteira, a toalha entorta-se; ao endireitar a toalha a fruteira cai; ao apanhar a fruteira batemos com a cabeça na mesa, que se parte em dois; ao querer impossivelmente colar a mesa damos um encontrão na parede e um quadro cai; ao pregar o quadro furamos a parede; e assim sucessivamente até não haver casa de jantar e aliás coisa nenhuma.

Nesta sequência, que só por acaso é cómica, o fim do mundo não resulta de um único cataclismo, mas de uma série de pequenos desastres; em particular, resulta dos esforços de correcção que a cada desastre fazemos, e que precipitam novas ocorrências catastróficas. A sequência do filme, na sua trivialidade, sugere que o fim do mundo se deve aos nossos esforços para adiar o fim do mundo. Num filme mudo insignificante há sempre um sentimento teológico mais agudo e mais aflitivo que em visões dos nossos semelhantes triturados pelas dentuças do Anticristo.

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