Todos nós nos recordamos quando Mário Centeno se sentou na cadeira de governador do Banco de Portugal (BdP) vindo directamente do governo na qualidade de ministro das Finanças. À época, talvez a única das personalidades do mundo político que não viu qualquer problema (leia-se, conflito de interesses) na passagem directa do ministério das Finanças para o cargo de governador do BdP, tenha sido o próprio.

Recuemos a junho do ano de 2020. No dia 15, o então ministro das Finanças, deixa essa pasta passando o testemunho ao seu secretário de Estado do Orçamento Luís Leão, que ficaria como ministro das Finanças de 15 de junho de 2020 a 30 de março de 2022.

Em julho de 2020 acabaria o mandato de Carlos Costa à frente do Banco de Portugal, cargo que ocupara durante 10 anos, tendo iniciado funções em junho de 2010.

Em 2020 e também em junho, no Parlamento, foram debatidos projetos de lei apresentados por CDS-PP, PAN, Iniciativa Liberal e PEV com o objetivo de alterar as regras de nomeação dos membros da direção do Banco de Portugal e também das entidades administrativas independentes, tendo sido aprovado o projeto do PAN e o do PEV, que fixam um “período de nojo” de cinco anos na nomeação do governador do Banco de Portugal para quem tenha desempenhado funções no Governo e na banca.

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Só em novembro de 2020 foi aprovada a lei que altera as regras de nomeação de governador e da administração do Banco de Portugal, obrigando a um intervalo de três anos entre funções na banca comercial e no supervisor, entrado em vigor a partir de janeiro de 2021, não vingando a norma que deu origem ao diploma para quem tenha estado no Governo como primeiro-ministro ou no ministério das Finanças. Marcelo promulga o diploma “ apesar de, em matéria de incompatibilidades, ficar aquém das expectativas criadas pelos debates dos últimos anos e meses, e de suprimir a intervenção do governador na escolha dos restantes membros do conselho de administração, reforçando assim a intervenção governamental”

Recordo que a nomeação para governador do Banco de Portugal provém do Conselho de Ministros, sob proposta proposta do membro do governo responsável pela área das Finanças e após parecer fundamentado da comissão competente da Assembleia da República. Em última análise Mário Centeno ocupou o lugar de governador do BdP sob a proposta de João Leão, já na qualidade de ministro, que anteriormente desempenhava o cargo de secretário de Estado do Orçamento. Em suma, João Leão nomeou o seu anterior “chefe”.

Na ordem do dia está agora o ex-ministro das Finanças que não demorou a passar directamente do governo para o cargo de vice-reitor do ISCTE.

De alguma forma já não estranhamos esta promiscuidade entre a vida pública e a vida privada – como o facto de o Ministério do Ensino Superior pedir verbas para vários projetos e o Ministério das Finanças, quando liderado por João Leão, só ter aprovado um: o do Centro de Valorização do Conhecimento e Transferência de Tecnologias, do ISCTE, com a verba vinda directamente da Administração Central de 5,2 milhões de euros.

Na verdade, não teria sido João Leão na qualidade de ministro a aprovar o montante mas sim a sua Secretaria de Estado (do Orçamento) que, nos termos da lei, é a entidade que inscreve em sede de Orçamento os montantes de pedido de financiamento. No entanto, quando alguém vindo da vida pública se socorre da lei para  legitimar a promiscuidade e o conflitos de interesses mais que evidente, não pode ser levado a sério e terá que ser alvo de análise pública criteriosa.

Com a legitimidade que assiste ao novo vice-reitor para assumir o cargo no ISCTE bem como para quem o convidou, há dúvidas igualmente legítimas da parte da sociedade civil. São factos análogos a este que explicam o facto de vivermos numa sociedade sem respeito pelos políticos e pelas instituições.

Um verdadeiro Estado de Direito democrático não se pode refugiar na lei para se valer de uma posição. O verdadeiro Estado de Direito é aquele que prima em dar sinais claros a todos os seus cidadãos de que há valores maiores que a lei. Nem tudo o que é legítimo é moralmente aceite.

Enquanto vivermos assim, vamos fecundando paulatinamente a destruição dos mais nobres valores da democracia: o respeito pelas instituições. João Leão poderia ter saído pela porta grande, mas preferiu ser mais um a contribuir para o aniquilar da moral política.