Rui Veloso disse que “não se ama alguém que não ouve a mesma canção”. Aparentemente, alguns portugueses têm levado a sério um verso de uma canção de amor. Hoje, talvez pudéssemos escrever “não se ama quem vota no papão”. Depois de mais de 1 milhão de pessoas a votar Chega, pensei acordar num país que desligasse finalmente a ficha dos “fachos”, mas nada disso aconteceu.

Na noite de 10 de março, quando já a procissão ia no adro, comecei a ver chover dedos da asneira e comentários nas redes sociais como “nojo e repugnância”, “somos um país de fachos”, “são uns calhaus”, “que vergonha, vou emigrar”. É fascinante a semelhança entre os comentários dos apoiantes do Chega e dos que são contra o Chega, podiam ser as mesmas pessoas a escrevê-los. A forma que a esquerda e os autointitulados “justiceiros do 25 de Abril” arranjaram para defender os valores de Abril começa a ser tão redutora como fazer um dedo da asneira ao votante do Chega. O 25 de Abril precisa de ser vingado, sim, mas não é assim. Eu sei que não tem piada imaginar um país a retroceder no direito à liberdade de expressão, no direito à liberdade de imprensa, nos direitos das mulheres. Eu não o quero, mas não quero que essa luta contra o retrocesso seja feita à custa do ódio e da incompreensão. Um país que quase não muda o currículo do que se aprende nas escolas desde antes do 25 de Abril não se pode queixar muito dos resultados que saem à vista nas eleições. Um país com uma escola pública cada vez menos personalizada às crianças, e feita para a produção em massa, como se, na verdade, fôssemos todos frangos de aviário. Um país onde a saúde mental ainda é uma piada, onde uma criança que necessite de apoio psicológico, mas que tenha nascido numa família sem rendimentos para isso, não vai ter psicólogo nenhum, porque as escolas não asseguram essa possibilidade, muito menos o SNS.

Pode haver muitos tipos de votantes do Chega, mas acredito que não haverá um que não sinta raiva e revolta. A raiva e a revolta começam desde cedo, não se chega aos 18 anos e, de repente, só porque temos o poder de ter um boletim de voto na mão, ficamos cheios de raiva e revolta. Posso usar o meu próprio exemplo, considero-me uma jovem privilegiada, os meus pais têm cursos superiores, são pessoas que sempre tiveram a possibilidade de me levar a países novos, sempre me mostraram livros, sempre me levaram ao cinema, porque tinham dinheiro, saúde, física e mental, e condições para isso. Hoje estou a terminar um curso superior e os meus pais tiveram a possibilidade de o pagar. Sempre tive a possibilidade de ir a psicólogos se precisasse, sempre tive direito a uma saúde física e mental completa. Eu não cresci revoltada, mas compreendo quem possa ter crescido. E se calhar agora algum intelectual de esquerda, exatamente com os mesmos privilégios, ou mais, do que eu, me diria “mas não ter condições de vida não é o suficiente para votar em fascistas!”.

Eu não sei se o Chega é fascista. Aparentemente, não é um partido que se assuma como fascista, embora possa ter apoiantes que já assim se assumiram. O Chega pode não ser fascista, mas o medo de muitos é que possa vir a ser. O meu medo é nem sequer nos importarmos em perceber as condições sociais ideais para o fascismo renascer. Já ouvi dizer-se por aí que 1 milhão de pessoas é claramente demasiada gente para ser ignorada. A questão não devia sequer ser essa, negar ignorar alguém já é quase negar-lhe a possibilidade de ser especial. No limite, quase podemos dizer que há mais de 1 milhão de pessoas que deixaram de se sentir especiais, há mais de 1 milhão de pessoas que sabem que os outros as veem como a “ralé”, “os com o ensino secundário, ou menos”, “os ignorantes”. Não por acaso, quantos jornais não fizeram já o retrato do votante típico do Chega. Há uma ideia que se quer reforçar sobre o votante do Chega, a ideia de que só vota no Chega quem é limitado. Não será uma ideia um pouco… como direi… fascista, supremacista?

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O pêndulo cai para os dois lados, e quem chama supremacistas aos votantes do Chega tem pintada na testa a sua própria supremacia. Miguel Esteves Cardoso escreveu dia 12 de Março no jornal Público “Ficámos assim a saber que há um milhão de portugueses que são do contra.”. É o argumento que se costuma usar para aquele amigo cujas ideias não queremos ouvir, “é do contra”. Talvez não funcione tão bem acusar mais de 1 milhão de pessoas de serem do contra.  O que é certo é que as canções mudaram. Hoje seria preciso inventar novos versos: “Não é o povo quem mais ordena/ Em cada esquina, um inimigo/ Em cada rosto, ódio”. A luta continua, dizem os antifascistas. Eu digo que as lutas também são desiguais, que há uma sociedade privilegiada, culta, arrogante e supremacista em relação aos seus próprios ideais, para quem há uma luta dos “feios, porcos e maus”. E por serem considerados os “feios, porcos e maus”, a luta não é tão digna. É muito mais simples dizer que são do contra, que são fascistas, que são limitados, que é esta vergonha de país que não anda para a frente.

Já dizia Agostinho da Silva: “O homem tem preguiça, em geral, de pensar todo o pensável e contenta-se com fragmentos de ideias, recusa-se a uma coerência absoluta. Não leva até ao fim o esforço de entender. E, exactamente porque não o faz, toma, em relação à sua capacidade de inteligência, uma absurda posição de orgulho. Compara o pouco que entendeu com o menos que outros entenderam, jamais com o muito que os mais raros puderam perceber.”

Parece que nos deixámos cair numa absurda posição de orgulho, que nos custará muito mais caro se não descermos agora do pódio.