Quem se recorda de Misteriosa Obsessão, o filme em que Julianne Moore procura convencer quem a rodeia de que o seu filho desaparecido não é fruto da imaginação? Pois bem: neste texto, proponho-me persuadir quem o leia de que é real o desaparecimento de um filho da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção 2020-2024.

Com efeito, embora isso tenha passado relativamente despercebido no espaço público, o Conselho de Ministros aprovou, no início do verão passado, uma lei que se propunha consagrar medidas nucleares previstas na badalada Estratégia: o Decreto-Lei Anti-Corrupção.

De acordo com o comunicado publicado na página oficial do Governo, o Decreto-Lei Anti-Corrupção obrigaria as entidades públicas e privadas de maior dimensão a adotarem programas de prevenção da corrupção e infrações conexas. Além disso, previa-se a criação do Mecanismo Nacional Anticorrupção, isto é, de uma autoridade com a missão de fiscalizar a implementação desses programas.

Ambas as medidas se inserem numa tendência internacional no setor, não sendo particularmente inovadoras ou disruptivas. Pelo contrário, consagrariam uma solução semelhante à que resultou da conhecida Loi Sapin II francesa: a atribuição de um papel ativo às grandes empresas na prevenção e combate à corrupção, bem como a criação de uma entidade independente – a Agence Française Anticorruption.

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Note-se que a aprovação do Decreto-Lei Anti-Corrupção pelo Governo representou o desfecho de um processo de anos, que incluiu a criação e desenvolvimento de estudos por parte de um grupo de trabalho especializado; a publicação de uma primeira versão da Estratégia e a recolha de contributos de interessados; a elaboração do texto do Decreto-Lei Anti-Corrupção; a consolidação de uma versão final da Estratégia; a recolha de pareceres junto de várias entidades…

Ora, se o Decreto-Lei Anti-Corrupção resultou da conjugação de todos estes esforços e recursos, logrando obter a aprovação do Conselho de Ministros, seria expectável que, tanto tempo volvido, estivesse em vigor. Não é o caso. Assim, será legítimo perguntarmo-nos, face à importância das medidas contidas no diploma, o que lhe terá acontecido.

A verdade, por surpreendente que pareça, é que não se sabe, tendo em conta que a criação legislativa ao nível do Governo não é pública. Mas sabe-se o seguinte: de acordo com o procedimento previsto na Constituição, os decretos aprovados pelo Governo são, de seguida, remetidos ao Presidente da República.

Confrontado com um diploma aprovado pelo Governo para promulgação como decreto-lei, o Presidente da República tem duas alternativas. Se estiver de acordo, promulga, ou seja, dá ordem para que o diploma seja publicado e produza efeitos. Caso contrário, veta, ou seja, manifesta a sua discordância com o diploma, comunicando-o por escrito ao Governo.

De acordo com a Constituição, o Presidente da República deve tomar esta decisão no prazo máximo de quarenta dias. Mas é precisamente aqui que o caso do nosso Decreto-Lei Anti-Corrupção ganha contornos misteriosos: é que decorreram cerca de cinco meses desde a sua aprovação em Conselho de Ministros…

É legítimo presumir, portanto, face à falta de informação conhecida e ao procedimento que acaba de se descrever, que o Presidente da República recebeu o diploma, analisou-o e decidiu exercer o chamado veto de gaveta. Ou seja, ao arrepio daquilo que lhe impõe a Constituição, terá descartado o documento, assim o condenando, em termos técnicos, à inexistência jurídica.

Curiosamente, Marcelo Rebelo de Sousa, que raramente se coíbe de comentar assuntos de relevância nacional ou de publicar notas sobre as promulgações e vetos de diplomas, não pronunciou, tanto quanto o autor destas linhas se tenha apercebido, uma única palavra sobre o tema.

Neste momento, o leitor pode estar a perguntar-se: o que é que acontece nestas situações? Se o Presidente da República, perante um decreto aprovado pelo Governo, nada faz, não há consequências? Pois bem: não. Simplesmente, o diploma não é publicado, nem produz efeitos. O Governo, por seu lado, perde a oportunidade de compreender o sentido do veto e de tentar salvar o diploma.

Do mesmo modo, os cidadãos mais atentos são deixados a questionar-se sobre as razões subjacentes à decisão de Marcelo Rebelo de Sousa, enquanto figura suprema de um país cujos cidadãos reconhecem a corrupção como endémica. Não estando disponível o texto final do Decreto-Lei Anti-Corrupção, torna-se ainda mais difícil julgar a apreciação feita pelo Presidente da República. Em qualquer caso, a travagem, sem qualquer explicação, de um avanço legislativo desta envergadura surge dificilmente conciliável com a qualificação do combate à corrupção, pelo próprio, como uma “prioridade nacional”.

Mas o ponto é precisamente esse: não havendo promulgação, nem veto formal, nem uma mera declaração aos portugueses, não há como escrutinar a opção tomada, por mais bondosa que seja. Cabe aos agentes políticos e à sociedade civil pedirem ao Presidente da República que explique, definitivamente, o misterioso desaparecimento doDecreto-Lei Anti-Corrupção.