Estávamos em 1944, quando se decidia, em New Hampshire (EUA), as regras do novo mundo. A Alemanha nazi estava praticamente derrotada, era percetível a decadência do poder global britânico (confirmada em 1956 com a crise do canal do Suez) e os Estados Unidos, uma power house industrial e militar, alcançavam um verdadeiro poder de intervenção global. As instituições que nasceram de Bretton Woods acabariam por ditar as regras económicas e comerciais do mundo, uma nova realidade de cooperação intergovernamental, ao invés da abordagem do hard power. Era o início da globalização moderna – porquê fazer guerra quando podemos simplesmente comerciar?

Do outro lado da barricada, os antagonistas pareciam não ter força suficiente para contrariar a ideia de que a democracia liberal do Ocidente realmente funcionava e de que as pessoas nesses Estados viviam melhor. A União Soviética, apesar da pujança inicial, tinha um motor económico extremamente debilitado e acabou por se desmoronar completamente no final da década de 80. China, depois de décadas de convulsões e revoluções encontrou o seu ritmo com Deng Xiaoping, numa ascensão silenciosa, focando-se em potencializar a sua economia gigante. Não desejava confrontações no palco geopolítico. Todos estes fatores, e juntando uma nova União Europeia extremamente próspera e de grande cooperação, tornou o mundo num local melhor, onde se morre menos, onde se tem mais comida na mesa e onde se ganha mais dinheiro. Mesmo com todos os problemas humanitários e de conflito nos chamados países em vias de desenvolvimento.

Este equilíbrio perdeu-se com dois fatores, a crise financeira de 2008 (a crise do subprime americano) e a ascensão da China. O primeiro fez com que o Ocidente, principalmente a Europa, perdesse a sua pujança económica. O crescimento europeu foi, desde então, anémico na maioria dos países, desencadeando uma série de problemas. Não apenas económicos, mas também sociais, com a ascensão de grupos de extrema-direita, populistas e com o choque entre etnias e classes. Os países europeus estão, hoje, extremamente endividados, e o fraco crescimento económico prejudica gravemente o pagamento das dívidas.

Numa tempestade perfeita, acontece um segundo fator, o shift de importância económica global: a região da Ásia-Pacífico passa a atrair mais atenção política e económica do que o Atlântico Norte, marcando uma rutura com os últimos 200 anos. A China é o país com mais população, que mais exporta e é a fábrica do mundo. Para além disso, nos últimos 10 anos tornou-se também num dos motores da inovação mundial, fruto de uma política assertiva do seu governo e de décadas a aprender (e a apropriar-se) da propriedade intelectual das empresas estrangeiras que se aventuraram no enorme mercado chinês. A China deixava a sua ascensão pacifica de Deng Xiaoping para trás, e incorporava um novo pensamento de um novo homem forte, Xi Jinping.

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A China, hoje, é uma potência global, mas ainda muito atrás dos EUA, principalmente em termos militares. Ainda que a crescente capacidade tecnológica chinesa seja uma forte preocupação dos altos cargos militares americanos, a verdade é que o núcleo tecnológico mundial é ainda Silicon Valley e o complexo industrial militar americano. Mais, os EUA são o único país com exército e marinha nos quatro cantos do planeta, com bases em todos os continentes. Inclusive, junto a várias fronteiras chinesas. Não deverá ser no nosso tempo de vida que a China consegue uma verdadeira ordem bipolar global.

Ainda assim, a competição existe, fruto da grande escala chinesa. De facto, a China tem mais de tudo, e isso vai permitir apanhar os EUA economicamente, e vai permitir um investimento cada vez maior nos setores militar e tecnológico. E, portanto, tudo pode acontecer, inclusive um conflito no extremamente disputado Mar do Sul da China.

Ainda que reconheçamos a superioridade americana, não podemos falar numa ordem 100% unipolar. É uma ordem duplamente unipolar e multipolar, com a emergência de países como a China e Índia (outro dos beneficiados pelo shift de importância para a Ásia-Pacífico), mas ainda sem a capacidade dos EUA. Numa terceira liga, podemos contar com a Rússia, um país muito debilitado, extremamente pobre (a perceção é contrária, porque a riqueza está centralizada em poucos indivíduos) e com uma demografia em decadência, mas que possui a pujança militar da sua antecessora União Soviética; o Japão, grande aliado dos EUA na Ásia, e com um investimento militar em crescente; o Brasil, que apesar da sua grande decadência económica, fruto da corrupção, é uma das economias mais importantes do mundo e o principal player na América latina; a Turquia, o tampão eterno do mundo ocidental e oriental; Os europeus Alemanha, França e Reino Unido, também em extrema decadência demográfica; e, por ultimo, e tendo em consideração o facto de que no futuro os maiores centros urbanos do mundo serão em África, a Nigéria e a África do Sul serão importantes peças no xadrez geopolítico futuro. África é também um continente com recursos inexplorados e em enorme quantidade.

Todas estas ascensões e decadências estão a desequilibrar o palco, que com o problema económico persistente na Europa, fazem com que as instituições do Pós-Segunda Guerra Mundial se tornem desadequadas. As eleições nos EUA, do ponto de vista geopolítico poderão não ser tão relevantes como a maioria pensa. A política americana para o exterior é um pêndulo, que vai da retração à expansão. Neste momento, fruto do shift de importância económica global, e fruto das dificuldades económicas europeias, a América está a expandir para a Ásia e a retrair no Atlântico. Não completamente, nunca poderia ser. O Partido Democrata poderá estar, de momento, mais interessado em preservar as alianças com o Ocidente, que são, na maioria, culturais e económicas. Mas sabem que o palco mundial, neste momento, se joga na Ásia. Biden, aliás, ao contrário do que muitos pensam, é muito crítico da China e privilegia uma abordagem mais assertiva com os chineses. Não é apenas Trump que discute esta questão.

A Europa, como anterior centro do mundo, tem mesmo isso a seu favor. A cultura e o interesse. É um mercado em decadência, sim, mas um enorme mercado e com prestígio. Com valores universais. Como tal, deve saber jogar neste shift e estar presente nos dois campos de maneira eficaz. Preservar a aliança com os EUA, enquanto aprofunda melhor a parceria económica com a China. Melhor, no sentido de começar a equilibrar a balança comercial e de investimento com os chineses. Exportar mais e atrair investimento inteligente para setores que interessam e que não sejam estratégicos do ponto de vista político. Até agora, isso não foi possível, uma vez que os países europeus enfrentaram sérias dificuldades devido à crise financeira global. O caso português, é um excelente exemplo.