Quando chega Dezembro é inevitável que o Natal seja centro das atenções. Mas nem sempre pelas melhores razões. As razões que nos movem nesta época roubam-nos parte do tempo em azáfamas brilhantes e coloridas. Tarefas empolgantes, sem dúvida, mas a anunciarem o desmanchar após as festas, prefigurando-se assim aquele amargo de boca que já bem conhecemos. Um sabor desagradável que as rabanadas são incapazes de disfarçar. As razões dos brilhos natalícios que nos embalam estes dias não nos dão o melhor do Natal. Mas que presunção a minha, a de julgar que há natais e natais, a de que o Natal tem um melhor e um pior.

A vida traz-me memórias de Natal que agora, chegada à maturidade dos sessentas, são para mim mais valiosas e transparentes. É útil e bom para a minha vida submetê-las a um juízo meu. A vida não é um “siga a marinha!”, mas seguir em frente diante dos meus e diante do mundo, com a responsabilidade e beleza de passar o testemunho, a minha herança. Isto porque estou interessada em saber o que ando aqui a fazer.

Lembro-me do meu entusiasmo em pequenina, na noite de Natal, ao ir dormir sabendo que de manhã junto à chaminé iria encontrar os presentes. E de como então acreditava sem pestanejar que não iria receber uma bicicleta porque não caberia na chaminé. Sorrio agora porque compreendo as dificuldades que tínhamos, mas sempre com grande amor e sentido de humor. E penso naqueles que nunca tiveram essa experiência. E naqueles que dão as suas vidas para que outros possam vir a conhecer o Senhor do Natal. Penso hoje em particular na Matilde, uma miúda recém-licenciada com vinte e dois anos, que no próximo sábado entra num Mosteiro da Ordem Trapista, em Bragança, levando na sua oração o mundo inteiro com os seus desafios e necessidades (in Regra).

Sinto ainda nas mãos os volumes e cores das cartolinas que um dia comigo fizeram um presépio. Os corpos eram todos iguais, a cabeça uma bola de ping pong, o resto do corpo um cone com os braços em cartolina colados numa parte do convexo. E as coroas dos reis magos muito finas e rendadas que eu recortava cuidadosamente, para que não se estragassem.

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E alargo ainda mais o meu coração, ao recordar a minha mãe a cantar só para mim, e a pedido, o “alegrem-se os céus e a terra, cantemos com alegria”. Eu ao seu peito, e com ela, a acreditar que “já nasceu o Deus Menino, filho da Virgem Maria”. Quantas vezes agradeci o ter tido uma mãe assim!?

Adiciono ainda a lembrança dos preparativos do almoço de Natal. O pôr a mesa, naquele dia diferente da dos outros. Serviço de pratos, talheres e copos mais bonitos. A comida a parecer-me mais quentinha. Muito importante era a presença da família. Estávamos todos. Mesmo os que já não estavam. E hoje é a força dessa presença que me junta aos meus irmãos na noite de Natal. Já terei agradecido o ter uma família assim!?

E como me vem o melhor do Natal? Poderia responder argumentando que a profecia de Platão no Fédon se realizou em Belém, como em tempos escrevi noutro jornal, a defender que a razão tem na categoria da possibilidade o seu melhor entendimento. Mas hoje é a vez da literatura porque estou a reler Fernando Pessoa. Num dos seus escritos encontrei formulado de forma genial esse melhor do Natal: “o meu ideal é ter um amigo íntimo: Não tenho ninguém em quem confiar. A minha família não entende nada. Não posso incomodar os amigos com estas coisas. Não tenho realmente verdadeiros amigos íntimos, e mesmo aqueles a quem posso dar esse nome no sentido em que geralmente se emprega essa palavra, não são íntimos no sentido em que eu entendo a intimidade”.

A minha família não entende nada. Até poderia entender, mas vêmo-nos tão pouco, às vezes só ano a ano! Não posso incomodar os amigos com estas coisas. Até poderia, mas é sempre tão à pressa, cada um tem as suas vidas… Por isso, tal como Pessoa, também eu tenho a necessidade de ter um amigo com quem partilhar humanidade.

Melhor um Natal material do que um Natal espiritual. Também eu vivo a azáfama do Natal, não o compro desencarnado, feito de piedades indiferentes às coisas do mundo. Interessa-me um Natal palpável, que nada despreza, a que tudo interessa menos o egoísmo que radica numa ausência de crítica, de espiritualidade, ou de conhecimento da realidade. Não me interessa esse Natal mundano, caricatura do verdadeiro.

Não será justo e bom juntarmo-nos para nos aquecermos ao sabor do bacalhau, que ele se pode cozinhar e comer de tantas maneiras? E sonhos, rabanadas, fatias douradas, azevias, e lampreias, que os ovos batem-se com segredos conventuais imemoriais e contemporâneos?

E os presentes? Como os três Reis e os pastores, cada um dando em alegria o melhor de si, estes o rebanho e a adoração noturna, aqueles um longo caminho como bons homens de saber com a atenção aos sinais a indicar o destino.

“Querendo, quero o infinito”, é ainda Pessoa que assim o diz neste verso. O tal amigo íntimo que sempre procurei fez-Se da minha carne para que ao vê-Lo me pudesse ver a mim. Que Aventura esta!