Em LTI: a Linguagem do Terceiro Reich (edição brasileira), o filólogo Victor Klemperer debruça-se sobre o modo como o regime nazi usou a linguagem para afirmar e consolidar o seu poder: “O nazismo se embrenhou na carne e no sangue das massas por meio de palavras, expressões e frases impostas pela repetição, milhares de vezes, e aceitas inconsciente e mecanicamente.” As observações de Klemperer destacam o poder das palavras na nossa forma de pensar, com claras consequências políticas, e refletem o argumento filosófico que Charles Taylor cunhou com a expressão “tradição HHH”, por referência aos filósofos alemães Herder, Hamann e Humboldt (Wilhelm, o filósofo, e não o seu irmão Alexander, naturalista).

Encontramos nestes autores uma conceção da linguagem que se distingue do entendimento filosófico tradicional: a linguagem teria uma função constitutiva do mundo e não meramente descritiva ou representativa. Uma vez que não podemos ter uma relação imediata (i.e., sem palavras) com o mundo, a própria realidade seria linguística. Isto significa que as palavras que usamos não são meras ferramentas para descrever o mundo ou os pensamentos que ocorrem na nossa mente – pelo contrário, elas criam o mundo, a realidade e o próprio pensamento. Em última instância, não existe realidade para lá das palavras que empregamos.

Deste pressuposto linguístico decorre uma dimensão política: se o mundo é criado pela linguagem que usamos, ela não seria uma ferramenta neutra, mas deveria ser escolhida e controlada por forma a criar um determinado mundo político. Eis a viragem linguística continental, sobre a qual se ergue o pensamento pós-moderno que vingará na segunda metade do século XX e que determinará a obsessão pós-moderna e crítica com a linguagem: se não há realidade para lá da linguagem, podemos usar esse poder das palavras para criar o mundo que queremos.

Também aqui se encontra, consequentemente, a raiz do movimento politicamente correto, que nasce com o objetivo de tornar a sociedade mais inclusiva. Esse esforço passaria (fundamentalmente, mas não só) por produzir alterações linguísticas, quer pela introdução de novas palavras e alteração de antigas palavras, quer pela eliminação de palavras discriminatórias ou ofensivas. O argumento seria simples: se o mundo depende das palavras que usamos, basta eliminarmos as palavras erradas para criarmos um mundo melhor.

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Este argumento simples não resiste, porém, ao teste do tempo.

Em primeiro lugar, é filosoficamente insustentável recusar a existência de uma realidade que condiciona a nossa linguagem e a nossa experiência de vida. O poder das palavras e da linguagem é inegável – afirmar, contudo, que não há qualquer realidade para além dela coloca-nos no domínio da irracionalidade. Como Jordan Peterson diz espirituosamente, as pessoas que afirmam não acreditar na biologia agem, na verdade, como se acreditassem – porque todas elas morrem

Em segundo lugar, aquilo que se afirmou como uma parole de resistência e libertação tornou-se rapidamente uma arma de profunda intolerância. Se, inicialmente, o objetivo era transformar a linguagem pública por forma a criar um espaço menos ofensivo e mais inclusivo, a evolução foi no sentido de um ímpeto cada vez maior de controlar o uso da linguagem, não só na esfera pública como também na esfera privada, e de um crescimento contínuo do “não-aceitável”. Esse crescimento traduziu-se na criação da cláusula absolutamente arbitrária de “discurso de ódio”: apesar de se tratar de um conceito indeterminado, tem, surpreendentemente, feito caminho jurídico e está hoje previsto na maioria das legislações ocidentais, para além de ser prolificamente utilizado no discurso político, na gestão das redes sociais e na comunicação social – independentemente da intenção do autor, da constante mutabilidade do objeto e de qualquer parâmetro objetivo. Tal não é, no entanto, de surpreender: o que a literatura e a história nos ensinam sobre o homem é que a sua ânsia de controlar o outro não tem limites.

Em terceiro lugar, este tipo de pensamento tem produzido aquilo que Jonathan Haidt e Greg Lukianoff designam como cultura de securitismo (culture of safetysm), com consequências funestas para as gerações norte-americanas mais jovens. No livro The Coddling of the American Mind (infelizmente, sem tradução entre nós), que amplia o artigo publicado na revista The Atlantic, os autores debruçam-se sobre os novos termos desta cultura (como trigger warnings, safe spaces ou microaggressions) e o modo como ela tem proliferado pelos campi académicos. De acordo com esta forma de pensar, os estudantes devem ser protegidos não só de termos considerados ofensivos, como também de tudo aquilo que possa causar desconforto. Foi assim que alunos de Direito expressaram incómodo por abordar nas aulas o tema da violação, incluindo pedidos para que a palavra “violar” não seja utilizada (como na frase, “violar a lei”). Ou que se tornou norma a existência de trigger warnings na lecionação de textos clássicos, para evitar protestos como os de uma estudante que, tendo sido vítima de violação, considerou inaceitável que o professor se tivesse focado na beleza da linguagem e no esplendor da imagética de Metamorfoses, de Ovídio. Ao invés de espaços de desafio e confronto intelectual, as universidades são cada vez mais entendidas como espaços de proteção emocional. Na verdade, o bonito apelo de Frederico Lourenço, no início do ano letivo, para a leitura dos clássicos, que, com toda a sua violência e imoralidade, nos ensinam tanto sobre a realidade humana, seria dificilmente aceitável do outro lado do Atlântico. E o resultado político desta cultura de securitismo parece ser a de uma crescente predisposição dos mais jovens para aceitarem soluções políticas autoritárias.

Por fim, importa considerar a mais grave consequência de equiparar palavras a atos. Como Ricardo Araújo Pereira aponta regularmente, ao adotarmos uma posição tão radical quanto ao poder das palavras, procedemos a uma equivalência entre dizer algo e fazer algo. O mesmo é dizer, tornamos legítima a ideia de que um ato agressivo é uma resposta adequada a uma palavra entendida como agressiva. É por essa razão que J. K. Rowling afirmou ter recebido “tantas ameaças de morte que poderia cobrir de papel a minha casa com elas” depois do seu comentário considerado TERF. Ou que Will Smith tenha entendido que a medida adequada à piada de Chris Rock fosse uma estalada. Ou que Salman Rushdie tenha sofrido a concretização da ameaça que pairava sobre si, trinta anos depois de lhe ter sido colocada pela primeira vez a pergunta com que Joseph Anton inicia as memórias sobre o escritor indiano: “Qual é a sensação de saber que acaba de ser condenado à morte pelo aiatola Khomeini?”