O SNS e a saúde privada são competidores, mas não no sentido de competição a que estamos habituados. Esta concorrência não é medida pelo crescimento do volume de negócio ou pelo market share de serviços médicos, pois ao contrário dos grupos económicos, o SNS não tem aquele tipo de métricas. Ao dia de hoje, a concorrência existe sobretudo em termos de recursos humanos, ou seja, um fator de produção.

A análise é complexa porque existem grupos profissionais mais atrativos para o privado, do que outras. No caso dos médicos, especialidades que possibilitam um volume grande de consultas, exames complementares, cirurgias e partos são mais interessantes. Também são mais interessantes as especialidades com maior procura por parte do público em geral: ninguém sabe quando deve procurar um médico de medicina interna, mas toda a gente sabe para que serve um cardiologista. De resto, a única coisa que sabemos que será a medicina interna a última a sair dos hospitais públicos.

Os seguros privados permitem, por seu lado, comparticipar uma consulta de urgência ou de dermatologia a uma pessoa saudável e sem fatores de risco com sinal da pele. Se ele tiver também uma dor lombar, poderá aceder sem limitações a uma TAC e consulta com um neurocirurgião. A perda de valor é esta: ao dia de hoje, no privado, existe um acesso fácil a especialidades altamente diferenciadas, que poderiam estar a ver situação clínicas mais complexas, previamente triadas por um médico generalista, que trataria os restantes casos. Não nos esqueçamos ainda, que os números dos exames complementares do privado são feitos não só à custa da procura do seu próprio setor, mas também do setor público, através dos exames convencionados, provenientes sobretudo dos cuidados de saúde primários. O que provoca ainda maior procura por profissionais de algumas especialidades, para o privado.

A OCDE referiu em 2020 que, mesmo considerando alguma sobrestimação, Portugal era o terceiro país da organização com mais médicos per capita. No entanto, segundo a Ordem dos Médicos, estes estão dispersos pelo sistema: 60% dos imagiologistas e dermatologistas, 55% dos obstetras e quase 40% dos anestesistas trabalham no privado. Pelo contrário, apenas 20% dos médicos de família trabalham no privado. O futuro não parece ser mais risonho: um estudo da Associação Nacional dos Estudantes de Medicina, revela que 43% dos médicos internos pensa fazer carreira no privado.

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Para compor a questão dos recursos humanos, quer o Estado, quer o privado investiram em estruturas e equipamentos que estão lado a lado: edifícios em betão, blocos operatórios, aparelhos de diagnóstico, camas. Para o SNS estas estruturas têm sobretudo de responder às necessidades da população. Para o privado, elas têm de ser sobretudo rentáveis, dado que foram pagas com empréstimos e dinheiro de investidores. Daí a necessidade de recursos humanos para ambos os lados.

Para responder às questões do SNS, existe a hipótese de reter os médicos através de maiores remunerações, tal como acontece com o sistema de dedicação plena ou de exclusividade. É reconhecido que os médicos têm de ser mais bem pagos, devido à responsabilidade que têm em decisões que podem afetar a saúde e a vida dos utentes, risco e desgaste físico e psicológico, e pelo tempo que têm de despender em formação.  Na minha opinião, o recente aumento de salários em 15% e a dedicação plena foram medidas interessantes para melhorar as remunerações dos médicos: um recém especialista, depois de 6 anos de curso e 4 a 6 anos de internato, pode ficar a ganhar cerca de 4000 euros brutos por mês. Em contrapartida tem de haver disponibilidade para fazer até 250 horas suplementares (remuneradas) por ano. O sistema pode sem dúvida ser melhorado: 250 horas é uma contrapartida excessiva e com impacto na vida pessoal e familiar, sendo uma contrapartida desigual versus o restante serviço público. Além disto, o programa está a ser usado sobretudo para colocar mais médicos a fazer urgências, quando existe falta de mão de obra explícita em cirurgias eletivas e consultas, sobretudo nos cuidados primários.

Subir salários do SNS na expectativa que estes sejam suficientes para a retenção de médicos tem alguns riscos. Primeiro, porque o privado pode também ele mexer em compensações para reter pessoas, transferindo parte desses custos para as seguradoras e segurados. Segundo, como visto em cima, existem especialidades com muita procura no privado, cuja valorização não é possível de acompanhar pela dedicação plena. Finalmente, porque existem outros fatores que levam à fuga de profissionais além do salário, como a existência de um modelo de gestão obsoleto, problemas de comunicação, falta de tempo para formação e investigação, ou simplesmente a dependência diária de computadores e software disfuncionais.

Voltando a falar de dinheiro, em princípio, não há grande razão para um ato médico ter um custo muito diferente no público ou no privado: os soros e as terapêuticas vêm dos mesmos laboratórios, as gazes e os stent coronários dos mesmos fabricantes, os médicos vêm das mesmas universidades.

Neste caso, será atrativo a atribuição um valor justo, a pagar pela assistência, qualquer que seja a instituição onde ela ocorra, aproveitando as estruturas já construídas e a massa trabalhadora que se dispersa entre sectores. Então, porque não assumir que, a capacidade instalada de público e privado juntos, consegue responder à procura, e definir incentivos para que produzam mais e melhor? Diria que que sim, mas com algumas regras.

Por exemplo, a nível de conflitos de interesse. Há anos, assisti ao um êxodo de médicos de um hospital público para uma PPP novinha em folha, com remunerações mais atrativas. Houve serviços que perderam apenas 2 ou 3 médicos, mas alguns chegaram a perder 50% do seu staff. Houve conflito de interesse, pois chefias do hospital público estiveram durante meses a recrutar pessoas para o novo hospital, para onde também iriam chefiar, com prejuízo para a instituição para qual ainda trabalhavam. Algo que poderia ter sido evitado, com regras e transparência.

Uma vez que existem procedimentos médicos que são mais atrativos do que outros (por exemplo, fazer exames complementares vs. hospitalizar idosos), existe o risco de que alguns prestadores privados se foquem apenas num tipo de assistência, que seja mais rentável, o que tem impacto na oferta assistencial e (uma vez mais) na assimetria na distribuição de recursos humanos. Questões que só podem ser acauteladas se o estado ou a região estiver claro para si quais são as suas necessidades de saúde.

Finalmente, a nível da comunicação. Recentemente uma doente referiu-me que tinha recebido um cheque cirurgia para fazer a sua intervenção noutro hospital, com opções que ficavam longe da sua casa, e uma vez que o serviço original que a atendeu estaria com atraso na resposta. Fazia sentido, mas a doente não tinha quaisquer esclarecimentos sobre como seria feita o seu acompanhamento e qual a garantia de qualidade naquela transição de cuidados. Talvez por isso, os dados mostrem que 80% dos vale-cirurgia são recusados. Numa situação de PPP ou de financiamento por doente, qualquer que seja o estabelecimento, é fundamental haver planeamento e clareza na comunicação com o utente.

Todas estas hipótese dão imenso trabalho e discussão, a começar pela definição do valor justo a pagar para cada uma das diferentes situações clínicas, quais os corretos critérios de acesso, por exemplo a exames e terapêuticas, e como poderemos melhorar a eficiência na prestação de cuidados de saúde. Estaremos nós disponíveis para uma reforma desta envergadura e para discutir, sobretudo, quanto e como e queremos pagar pela nossa saúde?