No Domingo passado, na SIC Notícias, tive o prazer de assistir a um debate entre o eurodeputado José Gusmão, do Bloco de Esquerda, e o deputado João Cotrim de Figueiredo, da Iniciativa Liberal. Tópico: taxa única de IRS. Gostaria de ter visto o professor Francisco Louçã em vez de Gusmão neste debate, dado ter sido Louçã quem afirmou, no mesmo canal, que esta proposta da Iniciativa Liberal faria que quem recebe 800 euros por mês pagasse mais IRS. Mas enfim, em vez do decano socialista revolucionário tivemos um dos seus discípulos, que a custo lá admitiu que com esta proposta quem recebe 800 euros por mês vai pagar menos, e não mais, IRS. Bom, teremos de aguardar por uma futura ocasião para que Louçã admita pessoalmente, e não refugiando-se num terceiro, que faltou à verdade (pelo sim pelo não, vou-me sentar numa cadeira confortável).

Mas passemos ao debate em si. José Gusmão mencionou, logo de início, que esta proposta de baixar o IRS de todos não iria baixar o IRS daqueles que hoje em dia… já não pagam IRS. Sim, é verdade. Quem paga zero IRS atualmente iria continuar a pagar zero IRS. Uma injustiça segundo o Bloco. Ao nível de uma baixa de preços de shampoos não beneficiar carecas. Ou de descontos em óculos não beneficiarem cegos.

O seguinte argumento do eurodeputado foi sobre a medida, apesar de vantajosa para milhões de portugueses de rendimentos baixos e médios, que teriam assim maior rendimento disponível ao fim de cada mês, também beneficiar Soares dos Santos e outros CEOs.

Aqui, dois comentários. O primeiro é que admito que adorava morar no país em que o Bloco parece pensar viver. Um país cheio de milionários, de CEOs e de muitas famílias a auferir elevados rendimentos. Com um pequeno esforço fiscal, entre tantos ricos, teríamos dinheiro para pagar um fantástico Estado Social para todos e ainda sobrava. Mas, infelizmente, o país onde vivo, que se chama Portugal, está estagnado há 20 anos. Não cresce. Tem milhões de pessoas a (sobre)viver com rendimentos mensais inferiores a 1200 euros por mês. José Gusmão deixou claro que, para o Bloco de Esquerda, aumentar em 50 euros mensais (700 euros anuais, incluindo subsídios de férias e Natal) o rendimento disponível dos (muitos) que auferem 800 euros brutos por mês é menos importante do que fazer os (poucos) ricos pagarem muitos impostos. Imaginem, alguém que aufere 800 euros brutos mensais receber adicionalmente num ano o equivalente a um salário mensal líquido. Até poderiam deixar de acreditar nas lengalengas do Bloco.

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O que me leva ao segundo comentário. Existe um campo da ciência económica que se debruça sobre o estudo dos comportamentos das pessoas (“behavioural economics”, no original em inglês), e que introduziu a distinção entre preferências expressas e preferências reveladas. Traduzindo para português corrente, as expressas são as que dizemos ter quando alguém nos pergunta, ou seja, o que queremos pensar que somos ou o que queremos que outros pensem sobre nós, enquanto as reveladas são o que fazemos na prática, que demonstram o que realmente somos. O Bloco de Esquerda expressa preocupar-se muito com os rendimentos mais baixos. Mas, quando confrontado com uma proposta que sobe o rendimento disponível de milhões de Portugueses, rejeita-a porque a mesma também beneficia uma minoria ínfima de “ricos”. E revela desta forma a sua real preferência e ambição: não é fazer com que deixem de haver pobres, mas sim que deixem de haver ricos.

Entra Olof Palme. Reza a lenda que este ex-primeiro ministro sueco, em visita a Portugal pouco após o 25 de Abril de 1974, foi confrontado com a afirmação de uma personalidade portuguesa (e aqui a lenda difere, dependendo de quem a conta, sobre o autor da afirmação, se Otelo, se Mário Soares, ou se Álvaro Cunhal): “Em Portugal queremos acabar com os ricos!”. Olof Palme, surpreso, terá respondido: “Curioso, na Suécia queremos acabar com os pobres!” Quarenta e seis anos depois, o Bloco de Esquerda continua na senda de querer acabar com os ricos. Entretanto, na Suécia de Olof Palme, que se dedicou a erradicar a pobreza, o PIB per capita é de 55 mil dólares, quase 2,5 vezes o português.

Voltando ao debate. O derradeiro argumento do bloquista foi agitar o papão de que reduzir receita de IRS significaria cortar no Estado Social: na saúde pública, na escola pública, nas pensões, etc. Um argumento a apelar ao medo (irónico no contexto da sua camarada de partido e de viagens a Bruxelas, Marisa Matias, ter recentemente declarado a sua candidatura presidencial como sendo “contra o medo”). Mas vamos aos factos:

  • A Iniciativa Liberal, segundo o que afirmou Cotrim de Figueiredo, estima que a diminuição imediata de receita de IRS que adviria da introdução desta proposta rondaria os 3 mil milhões de euros.
  • A receita total de IRS excedeu ligeiramente os 13 mil milhões de euros em 2019, segundo o Pordata. Em 2010, a receita de IRS rondava os 9 mil milhões de euros. Por outras palavras, mesmo após a redução estimada da receita de IRS que esta proposta implicaria, o Estado ainda assim arrecadaria mais mil milhões de euros, aproximadamente, em IRS do que antes do “brutal aumento de impostos” de Vítor Gaspar (eu ainda sou do tempo em que Catarina Martins afirmava ser contra e exigia a reversão deste aumento de impostos).
  • O Orçamento de Estado de 2020 previa uma despesa total da Administração Pública neste ano de cerca de 95 mil milhões de euros. A redução de receita de 3 mil milhões seriam um pouco mais de 3% (por extenso: três por cento) do montante total desta despesa.
  • Esta despesa não inclui apenas Estado Social. Inclui, entre outros, mais de mil milhões de euros anuais de pagamentos contratualizados com as ruinosas PPPs rodoviárias (uma herança do governo Sócrates). Mais de 6 mil milhões de euros de juros anuais com dívida pública (outra herança de vários anos de políticas socialistas de “gasta agora, depois logo se vê”). Várias “adjudicações diretas” aos cônjuges, filhos, pais, sogros, cunhados, enteados, avós, primos, tios e restante numerosa e faminta famiglia dos nossos idóneos governantes (com o beneplácito do Bloco de Esquerda, que suporta a atual solução governativa). Salvamentos de bancos com injeções de dinheiro público (previstas em 5 Orçamentos de Estado viabilizados pelo partido de Gusmão). A reversão da privatização da TAP (outra bandeira do Bloco). Etc, etc, etc, etc. A lista de despesas que nada tem a ver com o Estado Social é muuuuuuito extensa (aliás, arrisco dizer que se houvesse ampla vontade política de olhar com seriedade para estas, não só daria para reduzir IRS, como ainda sobrava para robustecer, e muito, o Estado Social).

Uma pequena nota: o cálculo dos 3 mil milhões de queda de receita não inclui o eventual aumento de atividade económica e consequente aumento de receita fiscal. Como qualquer economista poderá explicar (incluindo os do Bloco, se estiverem de boa fé), a propensão marginal para o consumo é muito maior entre quem tem menores rendimentos. Traduzindo para português: quem ganha pouco e passa a receber mais 50 ou 100 euros por mês, vai tendencialmente consumir mais bens e serviços com esse dinheiro. Seriam muitos milhões de famílias a consumir mais, a gerar mais atividade económica, a pagar mais IVA, etc. Por contraste, aos poucos que auferem elevados rendimentos, que ao receber mais fazem aquilo que Mariana Mortágua, a que perdeu a vergonha, não gosta: poupam e investem, gerando direta e indiretamente mais postos de trabalho, mais salários, mais receita fiscal.

Resumindo, os argumentos de bloqueio do Bloco resumem-se a dois: a inveja (“vamos ganhar mais, mas os ricos ainda mais que nós”) e o medo (“fim do Estado social”). Ambos duas falácias baseadas em apelo à emoção e não em racionalidade.

E termino com uma citação do deputado da Iniciativa Liberal no debate de Domingo, no melhor estilo Olof Palme:

“O problema deste país não são os ricos a mais. São os pobres a mais.”