O ordenamento, quer o urbano, quer o do mundo rural é um tema complexo (muito), mas ouvindo os treinadores de bancada, poderíamos ser levados a crer, erradamente, que se pode simplificar ou que é simples, mas não é assim. Têm sido feitas leis, decretos e portarias, muitas vezes desconexas e de difícil ou impraticável uso. A estas “qualidades” acresce a variável tempo que também é ignorada e, como se diz, tempo é dinheiro. As revisões dos planos directores demoram anos e têm outros tantos de atraso em relação à previsão de implementação (um plano tem um “prazo de validade” de 10 anos), mas as pressões a que estão sujeitos os autarcas e o tempo de resposta das “entidades” levaram a que haja mais de 10 anos de atraso em alguns casos.

No meio destes mares alterosos, movimentam-se os projectistas e os promotores, navegando “à vista” acusados de todas as malfeitorias. Algumas vezes com razão, muitas outras sem qualquer fundamento. Por muitas voltas que se dê, o custo da construção está directamente indexado à área construída. Há 20 anos era possível inserir um T3 em 90m2, hoje, com toda a legislação entretanto criada é virtualmente impossível em menos de 120m2. Ou seja, por decreto o custo da habitação T3 aumentou 25%.

Uma variável que tem sido ignorada (não é a única) é a ambiental. Não se vêem, por exemplo, planos para baixar a temperatura das cidades. Já começam a ser desenhados planos para responder ao acréscimo da pluviosidade (Lisboa desenvolveu um plano), mas para baixar, digamos 2º em 5 ou 10 anos não há propostas (mudança de pavimentos – voltar às calçadas de granito nos arruamentos, plantar árvores, implementar espelhos de água, sombreamentos, controlar a paleta de cores e materiais das fachadas e coberturas, aumentar a oferta de estacionamentos periféricos).

Outra variável importante é o tempo, por cada ano que passa na aprovação de um projecto, o custo da construção tem subido 30%.

Numa sociedade em mudança rápida (já o dizia Heráclito) onde as cidades “enchem” ou “esvaziam-se” ao ritmo do emprego (ou desemprego), não existe capacidade de resposta, em tempo útil, para grandes crescimentos ou decréscimos. Se uma indústria se quiser implantar em determinado local e se o PDM o não previr, o projecto morrerá e consequentemente o emprego.

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A população migra para o litoral e sobretudo para Lisboa. Mas a capital não é acolhedora, os preços da habitação vão subindo e o mercado de arrendamento é inatingível, mesmo para quem ganhe um ordenado médio. A pressão obriga à migração para outros concelhos, onde a habitação seja mais acessível e a distância do emprego seja aceitável. Mas os migrantes deparam-se com a lentidão na resposta, não da construção (apenas), mas da possibilidade de ela acontecer. A expulsão desses novos migrantes levará ao aumento da procura nos concelhos adjacentes, onde o poder de compra é menor. Essa nova procura fará expulsar quem estava menos “aclimatado” nesses concelhos que por sua vez farão aumentar a procuram mais a montante. Como no regolfo de uma barragem, quando se coloca uma parede num rio a água vai subindo para montante até toda atingir a cota da crista da barragem

Mesmo longe de Lisboa, no Algarve. os operadores turísticos queixam-se de que há uma enorme carência de mão de obra, mas esquecem-se que vão continuar a tê-la se oferecerem 1000€ de vencimento e o contratado tiver de pagar 700€ por uma renda.

As cidades são entidades complexas e onde devem coabitar todos os tipos de classes económicas e culturais. Actualmente temos vindo a assistir à expulsão dos munícipes de menores recursos (nomeadamente os mais velhos e os mais jovens) dos centros das cidades. Primeiro Lisboa, o aumento especulativo do preço das habitações (na compra ou no arrendamento) interdita-a a um larguíssimo estrato da população. Jovens casais, mesmo licenciados, idosos reformados, ou a defunta classe média.

Alheios à realidade, os legisladores, ou mais concretamente os teóricos, querem reduzir os perímetros urbanos e definir hoje e para todo o sempre onde se pode ou não construir. Numa lógica sem sentido, desaparece a figura do “solo urbanizável”. Dentro das cidades, o que até ao presente foram zonas expectantes, passarão a ser zonas “rurais”. É um erro gritante. No momento em que se luta contra a inflacção do preço da habitação reduz-se a oferta de solo urbano.

Há uma enorme escassez de mão-de-obra. Da especializada e da pouco especializada. Há que abrir portas a imigrantes para suprir essa falta, mas há que lhes criar as condições mínimas, entre as quais habitação condigna e acessível.

Portugal não tem sido dado nos últimos séculos a fenómenos (sismos, tsunamis) disruptivos que obriguem a refazer cidades do zero. Felizmente, mas existem microssismos equivalentes que também têm de ser tratados. Fala-se, já como uma certa convicção, na hipótese de haver um aeroporto de dimensão no concelho de Santarém. Quanto tempo será necessário para acomodar as alterações necessárias? As novas vias, as acessibilidades e naturalmente a hospedagem quer dos que transitam quer dos que irão por em funcionamento a cidade aeroportuária?

Continuamos a pretender cidades muito planeadas, sem permissão para adaptação ao tempo, ideias que deram frutos como Brasília, onde, dizia um brasileiro, não há botequim da esquina porque nem há esquina. Dessas cidades radiosas vieram os mal-amados bairros sociais, onde se amontoaram famílias de fraquíssimos recursos a quem retiraram referências próximas, de estética, de cultura e de modo.

Os espaços, para as pessoas com menos recursos, têm de ser inseridos na malha urbana sedimentada, em doses homeopáticas. Ao contrário do passado, pessoas com menos recursos, hoje, incluem uma multidão de recém-licenciados, com vencimentos a rondar o salário mínimo, sem capacidade para pagar uma renda de uma habitação decente.

Acresce que cidades muito compartimentadas aumentam os movimentos pendulares casa-trabalho/escola-casa, com custos (económicos, ambientais) acrescidos para a população.

Creio que é chegada a altura de considerarmos planos de multi-solução, que tenham em si mais que um cenário e que se vão ajustando em função da realidade, mantendo os denominadores comuns: o aumento do índice de verde por habitante, soluções para redução da temperatura, transportes públicos, eficazes e pouco poluentes, segurança.

É função do Estado prover habitação, pelo menos as condições para que ela aconteça. Arranjar forma de regular o sistema, intervindo no mercado. Não podemos criar cidades inacessíveis a uma enorme faixa da população, ou acontece-nos como em Paris, onde há bairros onde nem a polícia entra. O Estado pode, deve, intervir, do lado da oferta, para disciplinar os mercados, como o pace car na fórmula um.

Hoje um funcionário que tenha que trabalhar numa grande cidade, como Lisboa, por obrigação (policias, militares da Guarda Republicana, mas também enfermeiros, médicos e logicamente estudantes) não consegue arrendar uma habitação, quer pela falta de oferta, quer pelo preço.

Aqui, tal como nas barragens, é possível baixar o nível, abrindo comportas. As únicas entidades com capacidade para abrir essas comportas são as públicas. Primeiro em Lisboa (também Porto e Coimbra, naturalmente), aumentando grandemente a oferta pública para arrendamento (e apenas para arrendamento), mas para várias gamas, sem traumas. Para garantir a presença de certos funcionários, o Estado Novo construía bairros inteiros, para polícias, para ferroviários, para todas as profissões que necessitassem. Essas casas, que eram arrendadas, foram vendidas baratas após 74 e são hoje transacionadas caras. Têm qualidade e estão muito bem localizadas, mas da sua génese não há a menor imagem.

Fazendo contas, o peso da renda no rendimento das famílias não deve ultrapassar 20% da receita líquida do agregado (hoje foi definido 36% como limite, é mais que excessivo sobretudo se imaginarmos um jovem casal, que tenha dois rendimentos de 1000€, que infelizmente nem sempre se atinge) o custo da renda não devia ultrapassar 400€, para que consigam comer. Ora este objectivo não pode obrigar à migração interna. É aqui que o Estado deve baixar o muro da barragem, aumentando a oferta. Não de habitação social, de má memória, que promove guetos, mas oferecendo para vários escalões e dimensões familiares.

Temos visto testemunhos de polícias, por exemplo, que têm de dormir no carro por o ordenado não chegar para arrendar uma casa.

Quando falo em Estado entendo-o de forma lata, que incluirá, também, as autarquias, ou mesmo as juntas de freguesia.

Mais uma vez, foi agora anunciado um investimento em habitação pública, mas sabemos como de boas intensões e programas está o inferno cheio.

Se ignorarmos o valor do solo (o Estado tem uma miríade de terrenos dentro das cidades) que seria a componente social pode haver um retorno de 4% e rendas acessíveis:

Deixei para último os estudantes. Last but not the least. Um estudante universitário comporta um custo potencialmente insuportável para uma família. Não o preço das propinas (que é o elemento mais barato do processo), mas o custo da habitação. O preço dos quartos que pode ser visto nos sites especializados começa nos 400€. Ora para uma família de rendimento médio é incomportável. Também aqui o Estado pode intervir de várias formas, criando ele próprio oferta (como está a acontecer através do PRR), ou delegando, e aí reduzindo os impostos a quem coloque casas (ou produza residências) para estudantes. A menos que não consideremos o ensino como um investimento de todos nós.