Como em quase tudo na vida, a resposta a esta pergunta depende dos princípios filosóficos e metapolíticos que subscrevemos. Pensemos, a título de exemplo, no modo como nos posicionamos na tradicional divisão entre esquerda e direita, e que depende, em grande medida, da nossa visão antropológica – nomeadamente, de termos um viés mais otimista ou mais pessimista quanto à natureza humana. Trata-se de uma tese que é regularmente revisitada por Jaime Nogueira Pinto: uma visão antropológica mais hobbesiana (pessimista) tende a colocar-nos à direita, valorizando mais a ordem; uma visão mais rousseauniana (otimista) tende a colocar-nos à esquerda, valorizando mais a autonomia. Não se trata de um argumento final, e por isso falamos em tendências ou inclinações e não em relações de causalidade, mas é um indicador bastante útil.

Da mesma forma, podemos usar uma lógica de tendência para nos posicionarmos quanto à relevância ou eficácia dos debates políticos: que papel desempenham no processo de decisão?

1Hobbits, hooligans e vulcanos

Comecemos com Jason Brennan, que nos confronta, à semelhança de Platão, com um argumento epistemológico contra a democracia. A resposta à nossa pergunta dependerá do tipo de pessoa que somos, pois Brennan divide a população dos países democráticos em três grupos: hobbits, hooligans e vulcanos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Os hobbits são politicamente apáticos e ignorantes, não têm interesse em política e são regularmente abstencionistas. Em princípio, não assistirão ou mostrarão interesse por debates; mas, caso o façam, compreenderão pouco dos factos e temas que serão discutidos. Nessa medida, poderão ser influenciados por fatores não-ideológicos – como a imagem, o estilo combativo, o facto de se ser visto como vencedor –, mas não pela troca de argumentos.

Já os hooligans interessam-se muito por política e estão geralmente envolvidos em atividades partidárias ou ativistas. O problema é que se relacionam com a política como os adeptos fervorosos de futebol se relacionam com os seus clubes: consomem informação de forma tendenciosa e defendem sempre a sua equipa, independentemente dos factos. Nos debates não analisarão os argumentos com objetividade e desvalorizarão a utilização de informação menos factual e de estratégias mais emotivas por parte do candidato do seu partido. Neste caso, a resposta é clara: os debates políticos não farão diferença, a não ser tornar as claques mais ruidosas.

Os vulcanos serão aqueles que, interessando-se por política, procuram ser rigorosos e imparciais e evitar distorções de pensamento. Mesmo que tenham um partido ou favoreçam uma determinada posição ideológica, procurarão olhar para os debates com distanciamento e objetividade, avaliando os argumentos trocados e a qualidade das propostas apresentadas. Mas será que se deixam convencer pelos melhores argumentos, mudando até a sua intenção de voto?

Talvez seja melhor passarmos para Wilhelm von Humboldt.

2Quatro entendimentos sobre a linguagem

Aprendi com Bernhard Sylla, Professor de Filosofia da Universidade do Minho, que podemos encontrar nos escritos pouco sistemáticos de Humboldt (irmão do naturalista Alexander) quatro entendimentos de linguagem:

  • o primeiro considera que a essência da linguagem corresponde a uma competência linguística universal e está, nessa medida, relacionada com a noção kantiana de Razão enquanto organon universal do pensamento;
  • o segundo opõe-se a esta dimensão universalista: a essência da linguagem residiria nas línguas maternas, cujas estruturas determinam ou condicionam o pensamento, a fala e o agir dos seus falantes;
  • o terceiro parte deste sentido particularista da língua materna, mas ressalta a capacidade de o falante individual alterar a própria língua e criar mudanças no modo como interpretamos o mundo;
  • o quarto relaciona-se com o primeiro: partindo de uma capacidade linguística universal, a essência da linguagem encontra-se aqui no diálogo. É porque existe um outro que me responde que existe linguagem e razão, construídas numa troca permanente de argumentos sobre o mundo que apela a uma racionalidade comum.

A utilidade desta grelha de análise pode não ser imediatamente percetível, mas merece ser considerada: a partir dela, e passando para o domínio político, podemos avaliar praticamente todas as teorias políticas contemporâneas e compreender os argumentos metapolíticos dos quais partem.

Pensemos em Habermas, que considera que a política deve assentar numa base deliberativa de diálogo permanente com os outros, a partir de uma racionalidade comum, e se enquadra no quarto entendimento da linguagem; ou em autores liberais, como John Rawls, que universalizam a solução liberal, colocando-se no primeiro entendimento.

Permite-nos também identificar autores mais particularistas como Michael Sandel, que chama a atenção para o facto de a razão funcionar sempre a partir de um contexto específico, nomeadamente moral, e que poderia ser enquadrado no segundo entendimento; enquanto no terceiro caberiam teorias da tradição revolucionária, que, apesar de reconhecerem o poder da estrutura, entendem que é possível uma revolução do sistema para se criarem novas condições políticas.

3Quatro entendimentos sobre a política

Com inspiração nesta hipótese de trabalho, seria possível identificar quatro posicionamentos políticos com relevância nos nossos dias:

  • o primeiro corresponderia a uma perspetiva universalista, que apela a uma racionalidade comum e, nessa medida, a uma possibilidade de entendimento constante e global pelo facto de a razão ceder perante a validade dos melhores argumentos e independentemente das circunstâncias históricas e geográficas;
  • o segundo apelaria a uma perspetiva particularista: o modo como percecionamos politicamente o mundo depende do nosso contexto particular, nomeadamente aquele que resulta da nossa língua materna, das nossas tradições, da história da nossa comunidade. Nesta perspetiva, as diferenças culturais são sempre relevantes, e embora haja possibilidade de diálogo e entendimento dentro de cada cultura, nunca é possível uma compreensão absoluta entre culturas;
  • um terceiro teria uma índole materialista e apela àqueles que consideram que os interesses políticos são economicamente determinados e decorrem da nossa classe social. Neste sentido, um trabalhador nunca terá interesses políticos comuns aos da elite económica, pelo que a luta política oporá sempre estes dois grupos;
  • um quarto entendimento postularia a ideia de que a pertença a uma certa identidade condiciona radicalmente o modo como vemos o mundo pelo que a política se traduz numa luta entre diferentes identidades que têm, inevitavelmente, interesses diferentes. Este seria o entendimento identitário, encerrando a visão do mundo numa identidade específica.

Os dois primeiros entendimentos podem ser designados como dialogantes e os dois últimos como agonísticos – categorização que nos permite compreender a visão dos dois grupos no que diz respeito aos debates.

Para os primeiros, os debates podem mudar alguma coisa: a razão cederia perante os melhores argumentos, ou com efeitos universais ou com efeitos dentro da comunidade que define o bem comum. Não há um fosso intransponível entre homens e mulheres ou trabalhadores e empresários: os seus interesses políticos são racional e moralmente construídos e as convicções políticas podem ser partilhadas e negociadas tendo em vista o bem comum.

Para os segundos, a política é inevitavelmente um confronto entre posições diferentes e inconciliáveis e a luta política é permanente. Assim, na medida em que os debates consistem no confronto entre duas forças opostas, deles não resulta a vitória do melhor argumento, mas a possibilidade de oferecer aos membros do grupo mais clareza sobre os interesses que estão em causa e os argumentos que devem ser utilizados na luta.

Desta forma, quando Ricardo Conceição pergunta, na História do Dia, se os debates mudam alguma coisa, importa não esquecer que muito depende das nossas ideias filosóficas. Embora, em última instância, talvez possamos concluir como uma aluna me disse recentemente a propósito dos debates académicos: o que mais importa nos debates não é vencer ou convencer – é eles ajudarem-nos a pensar melhor. (E nestes momentos, é o aluno que dá a lição.)