Em 2018, juntamente com o meu marido, minhoto de gema, vimos em Boston, nos Estados Unidos, uma estudante de origem judia Ashkenazi com um lenço tradicional da Europa do Leste. O lenço tinha traços familiares. A sua estética lembrou-me os lenços tradicionais utilizados pelas mulheres camponesas do Minho, celebradas anualmente em Viana do Castelo, zona que passei a frequentar assiduamente por motivos familiares há anos. A extrema parecença visual entre os lenços tradicionais utilizados pelas mulheres camponesas do Minho – que o leitor já poderá ter visto em imagens antigas ou turísticas – e os lenços tradicionais que outras mulheres camponesas em terras que são hoje a Ucrânia, Polónia, Hungria e Rússia é notável. Pensei fosse uma mera coincidência. O lenço feminino, essa marca antiga e ubíqua do universo feminina, exibe incontáveis padrões e feitios, consoante a geografia e a religião. Seria difícil imaginar que, por mero acaso, camponesas em lugares geográficos distantes, mas cujas actividades quotidianas principais foram, muitas vezes, historicamente parecidas, tivessem desenhado lenços para as suas melenas com os mesmos padrões geométricos, motivos naturais-florais e cores primárias.

O lenço da esquerda é um lenço tradicional Ucraniano/Eslavo. O lenço da direita é um lenço típico do Minho/Viana do Castelo. Para além do vermelho, também são frequentes em ambas as geografias, lenços de outras cores, como o azul e o branco.

Por incrível e aleatório que pareça, a parecença entre os lenços minhotos e os lenços kokum ou babushkas (nomes dados aos lenços do leste) não é uma coincidência. São os mesmos lenços. Os lenços que os Portugueses identificam como sendo “do Minho” ou “de Viana”, hoje em desuso, vieram na verdade do Leste da Europa, no final do sec. XIX, e apenas se difundiram na primeira metade do século passado. Ao contrário de todo o restante traje, confeccionado localmente por autóctones com produtos locais, como o linho, a lã e os bordados, os lenços foram importados. Uma simpática desconhecida encaminhou-me para um documento da C.M. de Viana do Castelo, onde se lê que os lenços eram conhecidos como “lenços austríacos” e teriam tido origem na Rússia. Ainda céptica, confirmei no livro documental produzido por Maria Lamas em 1948, As Mulheres do Meu País, que afirma que “Também é digno de nota o facto de serem de origem estrangeira os lenços usados, na cabeça e no peito, pelas lavradeiras minhotas. Principiaram por ser importados da Áustria-Hungria, há muitíssimos anos sendo até conhecidos por lenços austríacos. Depois passaram a vir da Checo-Eslováquia. Presentemente já se fabricam no nosso País lenços do mesmo tipo, inspirados sempre nos modelos tradicionais.” (p.57-58, itálico no original)

A “apropriação nacional” dos lenços eslavos, provavelmente apelidados de austríacos de forma errónea na época do Império Habsburgo, é porventura uma coincidência sem importância. Mas ilustra uma série de coisas dignas de nota. Contrariamente àqueles que pretendem estancar culturas nos seus lugares, seja para as segregar ou para as proteger, a complexidade da realidade torna tal ambição fútil senão mesmo perigosa. De forma quase intrínseca, uma cultura é constituída em relação a outras culturas, bebendo delas, opondo-se a elas, modificando a partir delas. Isto significa que, se a proximidade geográfica por norma reduz a distância dos modos “culturais” – seja lá o que isso for –, determinar e delimitar as fronteiras concretas de uma cultura torna-se tarefa impossível. Tarefa impossível na exacta medida em que as migrações, as deslocações do ser humano, as trocas comerciais, as ideias escritas e não-escritas e, claro, a guerra, o sexo e a reprodução (voluntário ou involuntário) nunca se confinaram aos contornos exactos de linhas projectadas na realidade física como um carro confinado às quatro linhas de um parque de estacionamento.

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A origem recente de muitas das coisas que hoje denominamos como “tradicionais” surpreenderia muita gente. Como lembra Stephanie Coontz, aquilo que hoje apontamos como família “tradicional”, por exemplo, é, na verdade, algo recentíssimo, porque se baseia numa ideia de casamento e em condições materiais que não estiveram presentes durante a maioria da história da Humanidade. A ideia monolítica da família tradicional esconde a diversidade de estruturas familiares que teve de suportar a incerteza material, a migração e a guerra ao longo dos tempos. Da mesma forma, os trajes, tradições, usos e costumes que identificamos como sendo regionais ou nacionais, e que são uma das bases do nacionalismo cultural, são também construções frequentemente recentes, dos últimos dois séculos.

No entanto, ao contrário de outras ideologias e projectos, o nacionalismo contém em si mesmo um paradoxo particularmente interessante. Como projecto político e cultural, constrói-se projectando e romantizando um passado comum antigo. E, não só uma origem antiga, mas uma continuidade inevitável e demarcável que passou de geração e geração desde os antepassados comuns até nós que vivemos dentro das mesmas fronteiras geográficas. O paradoxo é o nacionalismo ser um fenómeno profundamente moderno e inegavelmente um dos mais bem-sucedidos projectos políticos da modernidade. O nacionalismo é, se quiserem, a modernidade a fazer passar-se por antiga.

Vários intelectuais interessantíssimos, de Kelles-Krautz, a Deutsch, Gellner e Anderson, mostraram como o nacionalismo emergiu, ao longo dos séculos XIX e XX, como resultado de inúmeras mudanças estruturais nas sociedades, como a industrialização, a democratização, a expansão da educação e da literacia, a colonização e crescente integração internacional, e a ampliação do próprio poder dos Estados e da competição entre eles. Um projecto simultaneamente político e cultural, a aura e a eficácia do nacionalismo partem da sua romantização, através da etnografia, da cultura erudita e de massas, e do discurso político, de um passado comum pertencente apenas a um povo – e a todo esse povo — de um país.

O nacionalismo (e, de forma correspondente, o regionalismo) não é só uma ideologia discutida entre as elites políticas que comandam uma nação. O seu poder extraordinário baseia-se na forma como é capaz de ligar essa ideologia a pequenas marcas culturais que uma maioria do povo vive e experiencia. O nacionalismo precisa não só de grandes epopeias nacionais, mas também — talvez principalmente – de pequenas marcas culturais como os lenços de Viana ou uma cozinha “típica”.  A chave consiste em transformar símbolos e imagens numa memória colectiva, de forma parcialmente artificial. A artificialidade vem da forma como eles têm de ser imaginados para serem afastados da complexidade da realidade. Mas não sou radical a ponto de dizer que é totalmente artificial, porque não é. Se é certo que os lenços foram importados da Áustria-Hungria por motivos prosaicos, também é certo que milhares de mulheres portuguesas o utilizaram na realidade.

No entanto, esta romantização do passado frequentemente cai em excessos. Deixamo-nos seduzir pelo passado que imaginámos. E fazemo-lo tão facilmente que nos esquecemos de como este foi na realidade. Uma releitura de um livro documental antigo, como As Mulheres do Meu País, que referi em cima, depressa mata qualquer romance com o passado. Se é certo que Maria Lamas descreve de forma quase etnográfica os trajes e costumes das mulheres portuguesas, um projecto inevitavelmente romântico, também é certo que apresenta a realidade material de como vivia uma grande proporção das mulheres portuguesas em 1948 de forma bem crua.

Pelo menos no meu caso, a variedade e beleza da etnografia é pouco consolo perante as passagens, que se repetem abundantemente, sobre o preto sempre presente. O preto era bem mais frequente e mais vestido do que qualquer traje de cerimónia de lavradeira abastada. O preto era “a cor mais escrava” (palavras das próprias), omnipresente em todas as aldeias e povoações, envergado pelas viúvas ou “viúvas de emigrantes”, que, sozinhas, tinham de passar toda a sua vida em tarefas agrícolas físicas e duríssimas, “no amanho das leiras, no agenciar do pão e na criação dos filhos”, em cumprimento de um “destino a que não podem fugir”. De que valem os lenços quando vemos mulheres a afirmarem a inevitabilidade de serem espancadas pelos maridos ou uma mãe a desejar a morte de uma filha doente para ela não ter o azar de ter de viver a mesma vida? Nunca é demais relembrar o que foi o passado para não o romantizar.

PS – Depois de uma edição esgotada há vários anos da Caminho, o livro de Maria Lamas está agora a ser reeditado, em fascículos, como o original de 1948. Naturalmente, é um livro marcado no tempo e que não escapa a lente ideológica da autora. No entanto, não deixa de ser um documento interessantíssimo para quem quer conhecer a história mais concreta do nosso país. Como complemento, o recente livro de Susana Moreira Marques, Lenços Pretos, Chapéus de Palha e Brincos de Ouro, publicado este ano pela Companhia das Letras, merece ser lido em conjunto com o de Lamas, como reflexão contemporânea sobre o livro da década de cinquenta e o que ele pode significar para as portuguesas de hoje.