Há 60 anos, Salazar acabou com a “Abrilada”, articulando com Lumbrales, Santos Costa e Kaulza de Arriaga um contragolpe, sempre com o apoio de Américo Thomaz. Quer o golpe, quer o contragolpe foram absolutamente incruentos, e as cartas de Salazar para Botelho Moniz e Almeida Fernandes, a demiti-los, verdadeiros modelos de cordialidade e de correcção político-social:

“… Não desejo agora discutir as ideias de V. Ex.ª quanto a certos problemas; sabe que com muitas concordei. O Chefe de Estado, porém encarregou-me de remodelar o governo e de continuar à sua frente. Depois da conversa havida com o Senhor Presidente da República, da parte de V. Exª e do Senhor Ministro do Exército, não há dignamente outra solução do que propor a exoneração de V. Exª e do Coronel Almeida Fernandes. Eu farei durante algum tempo o sacrifício de tomar conta da Defesa Nacional no que espero todos me auxiliem, sobretudo no que respeita a Angola, único problema que no momento me interessa e aflige. Aproveito a oportunidade de agradecer a V. Exª a sua prestante colaboração e atenções pessoais…”

Mas ainda que a relação e a colaboração de Salazar com o Exército tivessem então ganhado novo fôlego, as coisas tinham começado a mudar.

Dizia-me Borges de Macedo que Salazar tinha um partido político que o apoiava e que esse partido se chamava Exército português. Logo como ministro das Finanças, é aos oficiais que se dirige, precisamente porque percebe que é neles que está o poder. E que o “seu partido” serão eles – antigos cadetes de Sidónio, tenentes do 28 de Maio e depois capitães do Estado Novo, como Fernando dos Santos Costa, seu subsecretário de Estado da Guerra.

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É com o Exército que reprime as revoltas anti-Estado Novo, nos primeiros anos trinta; é o Exército que o apoia na Guerra Civil de Espanha; é com ele que aguenta a neutralidade, na Segunda Guerra Mundial, e que está na NATO, nos anos 50; e é este o Exército que lhe fica fiel, com Santos Costa, na crise Delgado.

Mas nos trinta anos em que, com o apoio dos militares, saneara as Finanças, alinhara com o vencedor da Guerra de Espanha, mantivera uma neutralidade digna na Guerra Mundial, colaborara com os vencedores anglo-americanos a partir dos Açores e iniciara a segunda revolução industrial, fazendo obras públicas de infraestruturas, a sociedade fora mudando. Salazar percebera-o na eleição de 1958, como já tinha percebido, com o Suez, em 1956, os “ventos da mudança” no mundo, mas, como na sua perspectiva de interesse nacional o Império era essencial para a independência de Portugal, percebendo-os, recusou-os.

Os militares e o poder

A estabilidade social decorre da legitimidade do poder político, ou seja, assenta na convicção dos governados da legitimidade do poder do governante. Quando essa legitimidade está em dúvida ou é disputada, a força, a razão da força, passa a ser o único modo de impor a ordem, como alternativa à anarquia, ou àquilo a que Hobbes chamava a “guerra de todos contra todos”, o regresso a um estado de natureza, pré-político.

Assim, historicamente, o papel político dos exércitos afirma-se em tempos e espaços de vazio entre legitimidades, em transições, em crises, sempre que existem nós górdios, rubicões institucionais, para cortar ou atravessar.

César, com a República Romana, Cromwell, com o Parlamento inglês, Bonaparte, com o Conselho dos Quinhentos, protagonizaram momentos destes (ou aquilo a que Gramsci chamaria “momentos “bonapartistas”), impondo-se como solução para impasses de legitimidades concorrentes, com forças equilibradas.

Na História europeia, o papel dos militares está também ligado ao fim do Ancien Régime e do direito divino dos Reis a governar, e à demora da soberania popular em afirmar-se para preencher esse vazio. Se bem que as monarquias constitucionais tenham sido os modelos políticos adoptados, sob estruturas sociais tendencialmente oligárquicas, a verdade é que, em todo este período, há um forte protagonismo, visível ou discreto mas real, dos militares – ora como garantes do status quo, ora como portadores de ventos de mudança. Talvez com excepção do Reino Unido (onde, desde a Gloriosa Revolução, o poder militar foi mais o da Royal Navy e de forças imperiais, como a Infantaria de Marinha, do que o de um exército terrestre, inclinado para a intervenção).

A partir da Segunda Guerra Mundial, nas sociedades do Norte euro-americano, quer a Leste, quer a Oeste, a intervenção dos militares na política não foi significativa; já nos espaços centro e sul-americanos, africanos e até asiáticos, na transição do domínio colonial para a independência, foi grande o protagonismo intervencionista das Forças Armadas.

Aí – no Médio-Oriente árabe-turco, na África Subsahariana e na América Latina –, na transição entre o domínio dos impérios coloniais e os novos Estados, os partidos independentistas e as novas classes políticas foram, em muitos casos, apoiados ou sustentados pelos exércitos.

Na Europa, o papel dos militares na política foi importante na Península Ibéria – em Portugal e em Espanha – mas também em França, na crise da IV República, na guerra da Argélia, no regresso de De Gaule e na fundação da V República.

Nos últimos 200 anos, em Portugal

O papel dos militares é dominante na História política portuguesa dos últimos 200 anos. Com as Invasões Francesas, a partida da Corte para o Brasil e a Revolução de 1820, que terminou oficialmente com o Antigo Regime, iniciou-se um período de intensa intervenção dos militares na política. À Restauração miguelista de 1828 e à guerra civil, segue-se um tempo de permanente protagonismo pretoriano, o liberalismo convulso, que só acabará com a Regeneração de Saldanha em 1851.

A República triunfa em 5 de Outubro de 1910 com uma revolta encabeçada pela Marinha, com baixas patentes militares e civis armados na Rotunda. E, durante a República, os golpes e contragolpes sucedem-se, com uma característica curiosa: só há baixas, mortos e feridos em quantidade quando há civis armados; pelo contrário, quando os pronunciamentos e a resistência são exclusivamente militares, tudo se resolve em boa paz, pelo telefone, entre camaradas.

Em 5 de Dezembro de 1917, há um movimento armado anti-Partido Democrático, chefiado por Sidónio Pais, e que o põe no poder. O sidonismo é um cesarismo patriótico e carismático, popular, transversal a republicanos e monárquicos, a laicos e católicos. Uma das unidades que o apoia é a Escola de Guerra, a futura Academia Militar. Sidónio é assassinado um ano depois, mas as sementes do movimento sidonista e anti-Democráticos criam raízes. E aqueles cadetes da Escola de Guerra – Academia Militar que a ele aderiram em massa, vão ser, nos 40 anos seguintes, os quadros das Forças Armadas.

O 28 de Maio de 1926 é um movimento de quadros militares subalternos. São capitães e tenentes, a quem os conspiradores civis sobrepõem um general de prestígio, Gomes da Costa. O General pode desempenhar o papel de chefe, mas quem manda são esses capitães e subalternos. E quando, saindo de Braga, acampam em Sacavém, entram vitoriosos em Lisboa e ficam meses acampados às portas da cidade, são eles o colectivo que põe e dispõe – que derruba Mendes Cabeçadas e Gomes da Costa e vai buscar Carmona como mediador e estabilizador. Mas mesmo com Carmona, quem manda na Ditadura Militar são eles, esses oficiais operacionais, espécie de soviete alargado de capitães, tenentes e alguns majores. Politicamente há de tudo – republicanos de várias tendências, de liberais a sidonistas; monárquicos e filo-fascistas. Sabem mais o que não querem que o que querem.

13 de Abril de 1961: golpe e contragolpe

Trinta e cinco anos depois, em 1961, começava a guerra de Angola: a 4 de Fevereiro eram os ataques em Luanda, e, a 15 de Março, os massacres da UPA, de Holden Roberto no Norte de Angola.

O Exército fora-se preparando para a defesa do Império e havia legislação nesse sentido; ao mesmo tempo, tinham-se enviado oficiais para cursos de contraguerrilha em França, em Espanha e na Bélgica. A experiência passada na Argélia fora seguida com atenção.

Em Lisboa, os acontecimentos de Luanda e do Norte de Angola vieram aterrar em cima de uma situação que já entrara em crise. Os ministros militares, o ministro da Defesa, Botelho Moniz, e o ministro do Exército, Almeida Fernandes, sentiam a pressão norte-americana e o que parecia ser uma linha anti-colonial da Administração Kennedy, representada pelo Secretário de Estado Adjunto para os Assuntos Africanos, Mennen Williams, que o embaixador Elbrick – com quem Botelho Moniz tinha frequentes contactos – ia transmitindo.

Numa carta a Salazar, Botelho Moniz expôs, de modo um tanto ou quanto fragmentado, uma série de queixas e reparos, criticando a política seguida mas sem dar alternativas. Ao mesmo tempo, ia tomando iniciativas junto dos comandos militares, contactando directa ou indirectamente alguns responsáveis das unidades. Parecia obcecado com a posição norte-americana e sugeria uma mudança formal de posição em relação ao então Ultramar, mas uma mudança que não alterasse a substância da política seguida, uma mudança “para americano ver”.

Aqui é importante uma explicação quanto às fontes de informação de Salazar. Ao cabo de trinta anos no poder, o Chefe do Governo teria com certeza percebido que muitos dos que o rodeavam só lhe diziam aquilo que achavam que ele gostaria de ouvir. E, não sendo estúpido, teria pensado em formas de aceder à verdade das coisas. Mas como?

O embaixador Fernando de Castro Brandão, que, depois do Franco Nogueira é o grande estudioso de Salazar, publicou, num trabalho pioneiro e de grande pormenor, as Agendas de Salazar. Nessas agendas, Salazar anotava escrupulosamente todas as pessoas que recebia em audiência, registando só os nomes, sem conteúdos de conversa. Ao fim de algumas leituras e de algum conhecimento directo, percebi que havia pessoas que lá iam e que não estavam nas ditas Agendas. Um deles era o capitão Rui Pessoa de Amorim, um quadro importante da Segurança de Estado. E Pessoa de Amorim, numa conversa com Salazar, no ano de 1961, teria dito ao Presidente do Conselho:

Não sei se V. Exª sabe, que o seu Ministro da Defesa anda a traí-lo…”

Ao que Salazar, discreto e maquiavélico, lhe teria respondido:

“Fico muito surpreendido! É sempre tão amável comigo.”

A conspiração Botelho Moniz – Almeida Fernandes – Beleza Ferraz (Chefe de Estado Maior General) fora avançando nessa Primavera de 1961, a do início da Guerra de Angola e a da posição nas Nações Unidas contra Portugal na alínea dos “territórios não-autónomos”.

Era uma conspiração um tanto ou quanto aberta. Os conspiradores, convencidos do amparo americano, avançam nos contactos a nível militar. Salazar, parecendo alheado do processo, vai conversando com Luís Supico Pinto e alguns próximos. O Presidente da República, sondado pelos conspiradores, que querem a demissão de Salazar, vai articulando alguma resistência. O Prof. João da Costa Leite (Lumbrales) e o general Santos Costa, personalidades importantes do Estado Novo, embora retirados do serviço activo, mexem-se para garantir a contramanobra a nível político e militar. Américo Thomaz, que não quer Salazar fora do Governo, joga com eles. Kaúlza de Arriaga, subsecretário de Estado da Aeronáutica que dispõe das recém-formadas tropas paraquedistas, está também na preparação do contragolpe.

Os conspiradores – Botelho Moniz e Almeida Fernandes – procuram convencer o Presidente da República a demitir Salazar; Thomaz recusa a solução e informa Salazar, que vai articulando o contragolpe, sem grandes alaridos. Na véspera de 13 de Abril, a 12, ao fim da tarde, Salazar é chamado ao Restelo pelo Presidente da República, não sem antes dizer a Luís Supico Pinto:

“Perante os manejos em curso de alguns militares, ainda não me disse nada o Chefe de Estado, não sei que decisão tomará []. Por mim estou incerto quanto a um ponto: não sei se voltarei para Coimbra ou se irei para Santa Comba.”

Mas com o encontro no Restelo, a “dúvida” quanto à posição do Chefe de Estado e o “ponto de indecisão” entre Coimbra e Santa Comba desvanecem-se. Thomaz reitera-lhe a sua confiança e Salazar decide, por causa de África, ficar no poder.

O Presidente da República manda o tenente-coronel Gaspar do Amaral percorrer as unidades da guarnição militar de Lisboa, para sondar a adesão ao golpe de Botelho Moniz. Da recolha de opiniões resulta a certeza de que os militares obedecerão à cadeia de comando – Ministro, CEMGFA, Governador Militar de Lisboa, enfim, a hierarquia.

No grupo contrarrevolucionário a conclusão é clara: se a hierarquia for mudada, a tropa reagirá normalmente, ou seja, obedecerá à cadeia de comando.

Assim, na manhã de 13 de Abril, Salazar manda as tais cartas de amável e cortês despedimento aos Ministros da Defesa e do Exército.

Os revoltosos têm uma reunião marcada na Defesa Nacional para as 17 horas, hora em que querem passar à acção. Mas não conseguem porque já tinham sido antecipada e publicamente demitidos e a hierarquia e a cadeia de comando imperam.

Num Estado extremamente observante dos processos legais como o Estado Novo, substituir os conspiradores por elementos de confiança não era fácil nem imediato, até porque, para serem exequíveis, as disposições teriam de ser publicadas no Diário do Governo, que era impresso na Imprensa Nacional.

Assim, no dia 13 de Abril de 1961, a partir das 15 horas, a Emissora Nacional e outras rádios começam a anunciar permanentemente que: “Vão ser enviados para a Imprensa Nacional os diplomas que demitem dos seus lugares os Ministros da Defesa e do Exército e nomeiam para os substituir os Senhores…”

Ou seja, quando pelas 17 horas, os conspiradores se juntam no Ministério da Defesa, na Cova da Moura, já pouco ou nada riscam e ninguém lhes deve obediência.

O assunto fora resolvido mas, a partir dali, ia começar uma longa guerra. Salazar percebera que os militares já não eram aqueles apoiantes entusiastas e incondicionais de há três décadas, mas uma classe profissional sensível aos tempos e aos modos das coisas.

O que teria consequências13 anos depois… mas já com Salazar fora do governo e deste mundo.