Há uma filmagem breve, em 8 ou 16 mm, que mostra Paul McCartney a passear pelas ruas de uma cidade talvez mediterrânica, cerca de 1966. É um indivíduo bonito, obviamente jovem, com o penteado impecável, um impecável fato claro e aquele impecável ar de simplicidade e vaga surpresa que lhe deu um trabalhão a conseguir. Essas imagens, que vi em tempos e nunca revi, pedem que se imagine o que seria ser McCartney naquela idade, no apogeu de uma carreira de dimensão impensável, beneficiário de uma mistura de popularidade e prestígio sem grandes precedentes.

As luminárias intelectuais da época não lhe recusavam o convívio. As suas canções eram interpretadas pela nata, de Sinatra a Ella, de Bing Crosby a Sarah Vaughan. McCartney era um símbolo sexual, da moda, da cultura e da contra-cultura. À escala da música popular, era igualmente um símbolo cimeiro de talento. Num determinado instante, que durou meia dúzia de anos, McCartney era o “maior”. E, sob a simpática ligeireza que afectava, ele sabia-o. E nem assim endoideceu. E isso, a ausência de loucura, é sobretudo o que o distingue dos parceiros de fama, quase todos menos famosos e quase todos um bocadinho avariados.

Ao contrário de Brian Wilson, o único contemporâneo seu concorrente em competência melódica, McCartney não se enfiou deprimido na cama por uma década ou duas. Ao contrário de Elvis, a única celebridade comparável, não se refugiou no peculiar conforto de Vegas e dos hambúrgueres. Ao contrário de inúmeros outros, não morreu de overdose, nem adoptou 17 esquimós, nem aderiu a um culto, nem apoiou terroristas, nem destruiu “suites” por desfastio. Ao contrário desse em que vocês estão a pensar, não se devotou a uma “artista” sem competências discerníveis e a clichés “contestatários” próprios da pré-adolescência. É verdade que, por pirraça, McCartney teimou em conceder à mulher um papel público que nada justificava. É verdade que se tornou vegetariano militante. É verdade que, para exibir com desfastio as credenciais do ofício, se viu preso no Japão por posse de marijuana. Insignificâncias, pois. Aos 80 anos completados hoje, 16 além dos 64 da lenda, crivado de homenagens e reverência, é possível dizer que McCartney foi um sujeito bastante “normal” para a vida anormalíssima que viveu. E demasiado normal depois que “morreu”.

Se calhar por irritação face à imaculada aura da criatura, em 1967 espalhou-se a história de que McCartney morrera meses antes num acidente de carro. De facto, a inveja mata, embora apenas num boato lançado por um radialista americano. E se há boatos que extrapolam um acontecimento prévio, este antecipou-o. De certa maneira, McCartney finou-se apenas dois ou três anos depois. Aí por 1970, o autor de boa parte dos “standards” da segunda metade do século XX abriu falência criativa, que se mantém em vigor em 2022.

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De 1970, data do último semi-clássico,“Junk”, para cá, McCartney compôs, gravou e publicou centenas de canções, na maioria banais, às vezes confrangedoras. Das vinte ou trinta que se salvam, nenhuma é indispensável. O mundo seria exactamente o mesmo sem “Calico Skies” (de 1997) ou “Here Today” (de 1982). Mas o mundo não seria exactamente o mesmo sem “Penny Lane”, “Mother Natures’s Son”, “I Will”, “Please, Please Me”, “Michelle”, “Paperback Writer”, “Here, There and Everywhere”, “For No One”, “Blackbird”, “Helter Skelter”, “She’s Leaving Home”, “Your Mother Should Know”, “Eleanor Rigby” e, apesar da enjoativa exposição, “Yesterday”, “Hey Jude” e “Let It Be”.

Para explicar a crise de inspiração, o fim da competição directa com John Lennon é uma tese interessante. Não me parece a tese acertada. É costume os principais “songwriters” da era do “rock and roll” gozarem de uma musa breve. Os pedaços da obra que realmente interessam em Joni Mitchell, Smokey Robinson, Leonard Cohen, Lou Reed, Tim Buckley, Paul Simon e Brian Wilson foram concebidos ao longo de dez anos, no máximo. Bob Dylan, o génio do bando, espremeu a mais fulgurante colecção de canções da contemporaneidade entre 1963 e 1966. Em entrevista muito posterior, Dylan falou do “lugar” de onde essas canções surgiam, um “lugar” que, confessava, ele já não era capaz de localizar e visitar.

E então? Assisti a um espectáculo de Dylan em 1993. Passei um terço do dito com os olhos semicerrados, a tentar substituir o senhor de meia-idade pela mítica figura escanzelada que indignara os comunistas no festival de Newport, em 1965. Se pudesse, semicerraria os ouvidos para não notar a tortura a que ele sujeitou “Just Like a Woman” e “The Lonesome Death of Hattie Carroll”. Jamais quis assistir a um espectáculo de McCartney, celebração postiça em pavilhões idem, para evitar novas figuras tristes.

“Tristeza” é o termo, a tristeza de descobrir que os heróis são terrenos e a tristeza de não o aceitarmos. Sem qualquer razão, exigimos às pessoas que admiramos a iluminação, a consistência e a “pureza” que não exigimos a nós próprios. A troco de um punhado de belas canções, criamos um ideal e definimos os critérios sob os quais o ideal é atraiçoado. Dos Wings até ao disco desgraçado que editou há ano e pouco, com raríssimas excepções pelo meio, McCartney gravou uma impressionante quantidade de produtos medíocres e indignos do seu nome. Mas o ponto é esse: McCartney dispõe de um nome a preservar, e nós, adeptos da preservação alheia, não dispomos. McCartney tem o direito de fazer as porcarias que faz como, em teoria, os restantes mortais teriam o dever de fazer uma fracção das maravilhas que ele fez, e não fizemos.

O melhor é calarmo-nos. E ouvi-lo: em 1963, 1964, 1965, 1966, 1967, 1968, 1969, 1970 e chega. E sobra. Para nós, ainda bem que Paul McCartney existiu. Para ele, ainda bem que continua a existir, e sempre a fingir ser o tipo normal que não é. Ou não foi.