A ideia de que robôs e máquinas poderão um dia substituir os seres humanos fascina e assusta muitas pessoas. A literatura, o cinema e os desenhos animados dão-nos imagens de robôs que assumem o controlo da humanidade num futuro não muito distante. A saga Matrix, 2001 Odisseia no Espaço, os Jetsons, entre muitos outros, povoam a imaginação de crianças e adultos há várias gerações. Até ao início do século XXI, o tema da inteligência artificial (muitas vezes abreviado para “IA”) estava confinado ao mundo académico, à ficção científica e a algumas indústrias. No final do século passado, a Google trouxe a inteligência artificial para a vida de todos nós de uma forma palpável. A possibilidade de investigar passou a estar na ponta dos dedos, substituindo as longas horas passadas em bibliotecas e livrarias.

Atualmente, a inteligência artificial está em todo o lado, nas redes sociais, na publicidade, na investigação científica, no desenvolvimento industrial, entre tantas outras coisas. Muitos programas informáticos são alimentados por motores de inteligência artificial. Os telemóveis, computadores e outros aparelhos eletrónicos incorporam sistemas de inteligência artificial. Sempre que pegamos num smartphone, desbloqueamos o telemóvel através de identificação facial ou usamos ferramentas de reconhecimento de voz, estamos a usar software alimentado por inteligência artificial.

Mas a revolução da inteligência artificial parece não ter chegado ao mundo do Direito. Obviamente, muitos advogados e escritórios de advogados usam sistemas de inteligência artificial incorporados nos seus dispositivos eletrónicos e em programas informáticos, alguns deles concebidos especificamente para advogados, tais como os sistemas de gestão documental e o software de faturação. Mas a inteligência artificial não transformou a advocacia da mesma forma que transformou outras atividades.

As mudanças na advocacia provocadas pelas tecnologias de inteligência artificial, os receios e o cepticismo dos advogados tornam necessário discutir o papel da inteligência artificial no futuro da advocacia e ainda se algumas ou todas as tarefas hoje desempenhadas por advogados não virão a ser substituídas por sistemas de inteligência artificial.

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Comecemos por definir “inteligência artificial”. Segundo a Enciclopédia Britânica “a inteligência artificial (IA) é a capacidade de um computador digital ou robô controlado por computador para executar tarefas normalmente associadas a seres inteligentes”. Por outras palavras, a inteligência artificial significa a capacidade de uma máquina simular a lógica de um algoritmo. Um algoritmo é uma sequência finita de instruções determinadas que são utilizadas para executar uma operação. Os algoritmos são utilizados como especificações para efetuar cálculos, processar dados, elaborar raciocínios ou tomar decisões de forma automatizada e outras tarefas. A inteligência artificial dá às máquinas a capacidade de perceber um determinado ambiente e de tomar medidas para alcançar os objetivos estabelecidos por um programa informático.

Para alguns advogados, é impossível que a inteligência artificial seja aplicável ao mundo do Direito, pelo menos no que respeita aos assuntos jurídicos mais complexos, porque a atividade jurídica, independentemente da sua forma, trabalha com “palavras”. Desde o início da história, a promulgação e aplicação de leis tem girado em torno de “palavras”. A retórica e a gramática sempre estiveram no cerne de todas as profissões jurídicas. As palavras podem ser ambíguas, ter múltiplos significados dependendo do contexto e da sua ordem na frase. A interpretação das palavras parece ser uma atividade puramente humana.

Contudo, devido à sua natureza “prescritiva”, o Direito e a lei dependem de simples processos de raciocínio dedutivo, o que torna o Direito numa atividade apta para “codificação” através de inteligência artificial. Em termos mais simples, o Direito não é imune à inteligência artificial; pelo contrário, o Direito é um campo ideal para a inteligência artificial.

Para os advogados de hoje, a boa notícia é que estamos ainda longe do dia em que a inteligência artificial assumirá as suas funções. Para que isso aconteça, é preciso “codificar o pensamento jurídico”.

Para “codificar o pensamento jurídico” é necessário criar os processos que permitirão às máquinas interpretar leis, contratos e decisões judiciais, o que parece estar ainda longe porque as “palavras”, as “decisões judiciais”, as questões jurídicas, em geral, assumem diversos significados, muitas vezes ambíguos e abertos à manipulação por parte de legisladores, ou seja, dos políticos que fazem as leis, advogados e mesmo dos juízes, que são simplesmente humanos e, por isso, têm sentimentos e se apegam a opiniões e convicções. A diferença entre o “certo” e o “errado” pode não ser clara, nem sempre se reduz a “sim” ou “não”, branco e preto, não é uma série de 0s e 1s.

No entanto, o pensamento jurídico pode e será “codificado” num futuro não muito distante.

O processo será o seguinte. Em primeiro lugar, a inteligência artificial substituirá os advogados e outros profissionais do Direito na revisão de documentos. Os sistemas de revisão de documentos utilizam já tecnologias de aprendizagem automática e tecnologia de reconhecimento de padrões para identificar conceitos chave de contratos, classificar cláusulas, padrões nas decisões judiciais, assinalar discrepâncias e similitudes na aplicação e interpretação de leis e contratos, etc.

Os advogados ainda são necessários para interpretar os dados que saem do sistema e atribuir significados a essas discrepâncias e padrões. Os sistemas informáticos aprenderão com a interpretação feita por advogados, construirão novos modelos, identificarão potenciais riscos, etc.

Há hoje programas informáticos, como o Luminance ou o Kira, que auxiliam advogados a realizar auditorias jurídicas e a aconselhar clientes.

Numa segunda fase, a inteligência artificial influenciará a forma como os tribunais preparam as suas decisões. Os sistemas de investigação alimentados por inteligência artificial já dão aos juízes e advogados acesso a decisões judiciais relativas a assuntos específicos relacionados com novos casos. No futuro, a inteligência artificial permitirá aos juízes identificar os elementos-chave das suas decisões e oferecer-lhes um roteiro para o processo de tomada de decisão. Tomemos o exemplo de uma simples decisão judicial sobre a competência do tribunal sobre determinada matéria que lhe é apresentada. Todos os países do mundo têm regras claramente definidas para determinar a jurisdição dos seus tribunais, regras essas que podem ser codificadas em linguagem informática, ou seja, num algoritmo.

Alguns sistemas informáticos, como o Lexis+, muito utilizado nos Estados Unidos, já analisam decisões judiciais e ajudam os advogados a avaliar a probabilidade de sucesso dos seus casos com base em decisões passadas.

Os futuros algoritmos jurídicos ajudarão juízes e advogados a determinar se um assunto se enquadra numa ou noutra categoria jurídica e como a lei será aplicada em casos específicos. Tal estará apenas a um passo do poder de determinar a aplicação de normas jurídicas. Mais uma vez, dando um exemplo simples, se alguém ocupar a propriedade de uma outra pessoa sem que a lei lhe confira o direito de o fazer, tal conduta cai no âmbito do crime de “usurpação de coisa imóvel”. A integração de uma conduta na previsão de uma norma é uma tarefa que no futuro será realizada por sistemas informáticos, com um grau crescente de complexidade, eliminando falsos positivos, aplicando regras de conflitos de direitos, identificando a existência de causas de justificação ou de exculpação, etc.

Muitos argumentarão que o Direito tem características específicas, nomeadamente a interferência de sentimentos e convicções, o que torna impossível a sua redução a algoritmos. A inteligência artificial – dirão alguns juristas – pode analisar estatísticas e comportamentos e penetrar em conceitos rígidos ínsitos em normas jurídicas, mas não pode entrar no coração e na mente humanas.

É errado analisar a inteligência artificial através desse prisma. Há duas áreas em que a inteligência artificial terá dificuldades em dominar: primeiro, na camada exterior das leis atuais, onde prevalecem elementos culturais, sentimentais e políticos que encobrem o núcleo das leis. Com o tempo, estes elementos serão depurados por algoritmos mais poderosos. A força da racionalidade desses algoritmos levará à descoberta de regras mais simples e, portanto, mais justas, livres de muitas das incoerências e conflitos que hoje se verificam.

No que diz respeito à advocacia, as tecnologias jurídicas e, em particular, os sistemas de inteligência artificial mudarão a forma como os advogados trabalham, mas exigirão todo o seu engenho para interpretar as questões jurídicas mais complexas, que serão necessárias para criar sistemas de inteligência artificial aplicáveis no domínio do Direito. Os advogados e cultores do Direito terão de decompor em termos simples os conceitos incorporados nas leis, contratos e decisões judiciais para ajudar a mapear os sistemas de inteligência artificial do futuro. Os advogados terão ainda de compreender como introduzir questões nos sistemas de inteligência artificial e como interpretar os resultados trazidos à luz pela inteligência artificial, formular estratégias jurídicas e criar documentos, peças processuais, contratos e pareceres.

A inteligência artificial dará novas capacidades a advogados e clientes. A inteligência artificial criará formas mais rápidas e eficientes de desempenhar todas as tarefas jurídicas, como é o caso da gestão de conhecimento, análise de documentos, redação de contratos, análise de contenciosos, preparação de peças processuais. A inteligência artificial libertará os advogados de muitas tarefas repetitivas e standardizadas.

A inteligência artificial transformará a advocacia e o Direito em geral. A inteligência artificial conduzirá à desintermediação dos serviços jurídicos como está agora a fazer em outros setores. No domínio financeiro, por exemplo, a compra e venda de ações e outros valores mobiliários centralizada em bolsas de valores terão de competir com sistemas de blockchain. O mesmo acontecerá com muitos serviços jurídicos existentes. Os serviços jurídicos tradicionais só serão prestados por advogados quando não for possível encontrar uma solução fiável e confiável de outra forma.

Muitos advogados encaram a desintermediação de outros setores empresariais como indesejável, ignorando que os serviços jurídicos automatizados já tomaram conta de uma parte das tarefas que antes desempenhavam. Sistemas automatizados prestam hoje serviços que e há alguns anos eram exclusivamente prestados por advogados. Serviços de cobrança de dívidas e de elaboração automatizada de contratos de baixo valor são já usados em alguns setores. É previsível que, a médio e longo prazo, muitos serviços jurídicos venham a ser prestados por máquinas.

Todas as profissões jurídicas beneficiarão com a inteligência artificial. Os legisladores farão melhores leis; os juízes darão sentenças mais justas; os advogados poderão aperfeiçoar as suas peças processuais com maior eficiência e qualidade. Muitos conflitos serão resolvidos antes de chegarem aos tribunais porque se a probabilidade de sucesso for baixa, essa parte procurará chegar a acordo ou desistirá de ir a tribunal.

A inteligência artificial não substituirá os advogados, mas mudará radicalmente a forma como os advogados prestam serviços.

No fim de contas, o pensamento jurídico deverá permanecer na esfera das atividades humanas porque dentro do núcleo de todas as normas jurídicas vivem valores e os valores não são “computáveis”. Os valores não podem ser reduzidos às formulações matemáticas de algoritmos. A criação e a aplicação da lei devem, no final, ser feitas por seres humanos e para os seres humanos.

O Direito é uma ciência e uma técnica, mas é também uma arte e, portanto, não pode ser reduzido a algoritmos. Este é o limite da aplicação da inteligência artificial ao Direito e o limite para qualquer tecnologia alimentada por inteligência artificial.