(O presente artigo baseia-se no meu contributo enquanto independente, como Coordenadora das áreas da Justiça e Regulação do Conselho Estratégico Nacional (CEN) do PSD, para o Programa da AD. Este contributo vincula-me apenas a mim própria.)
Já sabemos. A Justiça precisa de uma reforma sólida e profunda, com um horizonte que vá para além de uma legislatura, e não de alterações casuísticas ou tópicas. Nos últimos anos, fizeram-se alterações relevantes, mas pontuais. Se continuarmos a usar o mesmo método, obteremos sempre os mesmos resultados, incompletos e insatisfatórios.
Sendo o espaço exíguo e hercúlea a tarefa a que me proponho, concentrar-me-ei nos temas que considero prioritários, atenta a emergência de reforma que se convola.
Nos últimos anos, várias comissões e grupos de trabalho elaboraram documentos preciosos, repletos de contributos importantes. No entanto, salvo raras exceções, cada contributo reflete apenas uma visão parcial das várias justiças que é preciso ter em conta. Por outro lado, não obstante a qualidade desses contributos, a sua esmagadora maioria não passou do papel. Tais contributos não podem ser desperdiçados.
Existem medidas que podem implicar alterações à Constituição e outras que não. Urge olhar para a Constituição da Justiça e fazer um balanço sério da forma como a mesma tem, ou não, contribuído para resolver os principais problemas da Justiça. A Constituição não pode servir de bloqueio a reformas necessárias. Mas as questões fundamentais da Justiça não podem flutuar ao sabor de paixões conjunturais e anseios mediáticos, projetados em medidas avulsas e pacotes legislativos desgarrados. Neste tópico de estalão constitucional, importa sublinhar duas linhas de acção:
- Quanto à Constituição Judiciária, a constitucionalização das questões estruturantes do nosso sistema de Justiça, desprovida de qualquer função dirigente, protege-as de alterações conjunturais disruptivas dos seus princípios fundamentais, contribuindo para a sua estabilidade normativa, segurança jurídica e independência face aos restantes órgãos de soberania;
- É preciso garantir o reforço do princípio da tutela jurisdicional efetiva através da previsão dos meios e regras processuais que garantam uma proteção global, ampla, efetiva e em tempo útil dos direitos fundamentais.
A complexidade das reformas exigidas postula, efetivamente, uma metodologia e uma cultura política distintas das práticas anteriores, baseadas em dois eixos transversais fundamentais.
Primeiro, é preciso desgovernamentalizar as escolhas políticas de Justiça.
As políticas públicas da justiça têm sido excessivamente governamentalizadas. O que não é compatível com uma matéria cuja dignidade político-constitucional postula uma visão exigente e pouco maleável do princípio da separação e interdependência dos poderes. Tais políticas têm estado demasiado associadas aos sucessivos Ministros da Justiça, que quase nunca são chamados, pessoal e diretamente, a prestar contas democráticas. Ministros cuja rotação e ritmos políticos não contribuem para a necessária estabilidade de uma qualquer reforma.
Segundo, impõe-se democratizar a Reforma da Justiça e as designações e nomeações mais importantes.
O Parlamento é o órgão representativo por excelência e deve, por isso, ter um papel preponderante na Reforma da Justiça. Tal como tem acontecido nas experiências comparadas. Na reforma propriamente dita, no acompanhamento contínuo e exigente da sua concretização e respetivos balanços periódicos exigidos. Em constante atualização, sentido crítico e próximo das várias justiças. Bem como na regulação normativa primária das suas questões mais estruturantes. Em todas as vertentes da Justiça e da Jurisdição que possam, direta ou indiretamente, projetar-se na independência judicial e dos atos jurisdicionais. O Parlamento é um dos centros do nosso sistema político e tem o primado do poder legislativo. É lá que deve residir a base institucional de qualquer reforma da justiça. Esta refundação democrática da justiça deve ser transversal à Reforma da Justiça.
Por outro lado, o Parlamento, centro democrático do país, deve ser chamado, em exclusividade, a regular normativamente os estatutos dos magistrados e as questões basilares da Justiça. Bem como a participar e a assumir a responsabilidade, isolada ou partilhada, pela designação dos principais líderes da Justiça, elegendo-os por maioria qualificada ou avaliando-os antes das respetivas nomeações.
Por tudo isto, é fundamental institucionalizar o mecanismo da reforma da Justiça, atribuindo a missão do seu desenho a uma Comissão independente, permanente, de base parlamentar. Com um prazo definido e metas quantificadas a 5 anos. Sem prejuízo de medidas urgentes, transitórias, para a Justiça Administrativa e Fiscal. As suas propostas e recomendações deverão ser, posteriormente, aprovadas por consenso parlamentar com vista à sua implementação numa década.
Pela urgência de moto, no que tange à Justiça Administrativa e Fiscal, urge desmistificar a questão da unificação da jurisdição comum com a jurisdição administrativa e fiscal e elaborar um estudo aprofundado das vantagens e desvantagens da existência de uma ordem única de tribunais, um único Supremo Tribunal e um único Conselho Superior da Magistratura Judicial. Trata-se de uma proposta recorrente que ainda não foi objeto de uma reflexão séria, o que tem fragilizado a ordem administrativa e fiscal. Será que as vantagens da atual separação superam os argumentos de maior eficiência e eficácia, geralmente aduzidos em favor da unificação? Desde logo, há que aferir em que medida a presente configuração das jurisdições serve, realmente, o princípio da tutela jurisdicional efetiva, através da procura de equilíbrios adequados entre a tutela de direitos fundamentais e o interesse publico da Administração.
Convém ainda salientar que qualquer reforma sólida e robusta requer um diagnóstico intensivo, realista e pragmático da situação da Justiça, cuja monitorização permanente, análise estatística e métodos de avaliação devem ajustar-se aos indicadores europeus e internacionais mais relevantes. Refira-se, com especial destaque, o processo de avaliação dos sistemas judiciais sedeado na European Commission for the Efficiency of Justice (CEPEJ); quanto ao Estado de direito, o World Justice Project e o EU Justice Scoreboard .
No capítulo da celeridade processual da litigância complexa (os designados megaprocessos), importa introduzir uma nova visão do processo, que estimule a adoção de novas técnicas de gestão processual, para além do reforço de uma cultura de eficiência nos tribunais. Cabe incentivar uma visão do processo que atenda aos custos sociais e económicos ligados à duração dos processos e à apreciação dos fatores conducentes aos atrasos processuais e à melhor forma de os resolver. É preciso valorizar um modelo de maior flexibilidade e amplitude na gestão processual, de maior dinamismo e intervenção do juiz, com um acréscimo de instrumentos processuais à disposição.
Por fim, nenhuma Reforma da Justiça pode lograr sucesso sem o empenho e a motivação de todos os seus agentes. É urgente atrair talentos, valorizar a carreira dos magistrados e repensar o acesso aos tribunais superiores. Assim como valorizar as carreiras dos Funcionários Judiciais e, também, dos Guardas Prisionais, atenta a complexa realidade do sistema prisional. É, igualmente, fundamental que os tribunais disponham de todas as condições, designadamente de autonomia administrativa e financeira, que garantam o seu normal funcionamento.