Começámos na semana passada com a notícia da publicação em Diário da República da Recomendação da Assembleia da República ao Governo sobre a eliminação de práticas de violência obstétrica e a realização de um estudo sobre as mesmas. Em concreto, o diploma prevê que se “diligencie pela eliminação de práticas de violência obstétrica, como a manobra de Kristeller e a episiotomia de rotina.“. Acrescentando, ainda, que recomenda que se “realize um estudo nacional anónimo sobre práticas de violência obstétrica, incluindo o «ponto do marido».

Ainda que seja uma inovação, este diploma fica aquém daquilo que a realidade necessita. Mas então, quais os pontos positivos e menos positivos (ou negativos) desta recomendação?

Pontos positivos

  1. Reconhecimento da existência da “violência obstétrica”: pela primeira vez verifica-se a utilização do termo “violência obstétrica” num diploma legal. Ainda que já há alguns anos que o termo tenha vindo a ganhar dimensão em Portugal, principalmente graças às associações e movimentos cívicos pelo respeito dos direitos da mulher na gravidez e no parto;
  2. Reconhecimento de determinados procedimentos como violência obstétrica: na recomendação é reconhecida como violência obstétrica alguns procedimentos há já algum tempo desaconselhados pela OMS – e sem qualquer evidência científica como benéficos para a mulher e/ou bebé -, como a Manobra de Kristeller, a episiotomia e o “ponto do marido”. Com a publicação desta recomendação, fica claro que estas práticas se tratam de violência obstétrica.

Pontos negativos

  1. Fica ainda em falta a definição do conceito de “violência obstétrica”: será importante definir um conceito amplo de violência obstétrica, de modo a que seja mais fácil o enquadramento das condutas dos profissionais de saúde que desrespeitem os direitos das mulheres na gravidez e no parto – na verdade, esta definição encontra-se em falta desde 2019, quando com a publicação da Lei nº 110/2019, o legislador ficou aquém do necessário sem definir o conceito de violência obstétrica, ainda que seja esse o objetivo último desta mesma lei;
  2. Consequências adequadas para os profissionais de saúde cujas práticas consubstanciam violência obstétrica: no limite, será de tipificar como crime – ou seja, criminalizar a prática – de violência obstétrica. Ainda que possa ser considerada, por alguns, como uma “solução radical”, face à cultura enraizada e face à falta de consequências efetivas para os profissionais de saúde que levam a cabo estas práticas, poderá ser o único meio dissuasor eficaz destas práticas.

Ora, sabemos que vivemos num país com machismo sistémico, quando há um forte movimento a crescer contra a violência obstétrica e, mesmo quando a própria Assembleia da República reconhece a sua existência, existem vozes que se levantam para o contestar. Pelo que, nada mais nos resta concluir que continuamos a viver numa sociedade organizada num modelo misógino, machista, padronizado por uma hierarquia muito marcada, protocolos hospitalares inflexíveis, um olhar sobre o parto como um evento patológico, onde o profissional de saúde é o salvador do bebé ao “fazer o parto” à mulher. Ademais, vai salvar o bebé daquela mãe que agora ousa ter preferências e ir na onda desta modernice do parto humanizado.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Porém, no fundo, essa é a real vontade da mulher: que respeitem os seus direitos de modo a que tenha, conforme as recomendações da OMS, uma experiência de parto positiva. Não caberá, de todo, às mulheres, enquanto utentes, informarem-se do que se encontra em falta para que os cuidados sejam humanizados. Pois, de facto, as mulheres enquanto utentes, e para que possam obter a experiência de parto positiva que tanto almejam, querem apenas ser ouvidas pelos decisores, querem transparência, consequências e, acima de tudo, que seja quebrado de vez o ciclo de violência.

Avance-se com uma discussão clara e honesta no âmbito da sociedade civil sobre os cuidados de saúde materno-infantis durante a gravidez, parto e puerpério. Que a recomendação não passe disso mesmo e que seja levado a cabo o estudo referido na mesma. E para isso é preciso ouvir as mulheres: perceber o que se passa nos blocos de parto (e não só) em Portugal para que, à boleia dos movimentos cívicos que brotam contra a violência obstétrica, cada vez mais mulheres ganhem coragem para partilhar a sua experiência – algo bastante positivo que as redes sociais nos trouxeram, permitir a partilha de experiências de Norte a Sul e Ilhas, e as mulheres portuguesas perceberem que não estão sozinhas e afinal aquilo não aconteceu só com elas.

Enquanto o estudo não avança e se retiram consequências dos dados que serão alcançados, enquanto as mulheres não são ouvidas, enquanto não se avançar com um verdadeiro debate sobre os atuais cuidados de saúde materno-infantis – com a evolução dos dados sobre a morte materna ou neonatal proporcionalmente inversa aos relatos de violência obstétrica, ainda que um tema não esteja diretamente relacionado com o outro, mas cuja bandeira da descida dos números da mortalidade é hasteada pelos profissionais de saúde – e, principalmente, enquanto não existirem verdadeiras consequências para a prática de atos que consubstanciam violência obstétrica, resta apenas às mulheres exigirem que essa mesma responsabilização seja efetivada: por tudo isto, e todas as consequências físicas e emocionais que resultam da violência obstétrica, uma recomendação é poucochinho.