Comecei a fazer braços de ferro diários, comigo mesma, para conseguir desligar o telemóvel mal entro no carro. Isto, claro, se for eu a conduzir.

Para já e porque desligar o telemóvel é quase antinatural, obrigo-me a enfiar o aparelho no porta-luvas, em modo de voo, para não ter tentações, mas mais à frente espero nem ter que fazer isto.

Tomei esta decisão por muitas razões. Todas as que conhecemos e têm a ver com a segurança na estrada, mais as multas pesadas que vão pesar ainda mais, e ainda os pontos subtraídos na carta de condução, mas acima de tudo por uma questão ética e de consciência. Explico-me, para não parecer presunçosa.

Para além das campanhas com vídeos que se tornam virais, com testemunhos de pessoas que foram vítimas de atropelamentos, e notícias de acidentes em que as vítimas nem sequer ficaram cá para contar como foi, dei comigo a ser quotidianamente confrontada com condutores erráticos de carros e camionetas que seguem a velocidades consideráveis enquanto teclam ou falam compulsivamente ao telemóvel, de aparelho na mão, guiando por ruas e avenidas de muito trânsito, cheias de peões onde se cruzam também os novos condutores de bicicletas e trotinetas, mas também em estradas e autoestradas.

Esta semana assisti a duas cenas chocantes que vieram reforçar este meu propósito. A primeira, na manhã em que choveu muito e a visibilidade era completamente reduzida, dado o nevoeiro intenso, eu já tinha saído da autoestrada no sentido Lisboa-Cascais e estava a chegar à penúltima rotunda antes daquela em que deixamos o novo campus de Carcavelos à esquerda e apanhamos a marginal ao fundo. Ao meu lado, entre rotundas, um carro muito acelerado e, lá está, com ‘passo’ muito errático, ia varrendo a estrada para a direita e a esquerda.

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É muito fácil perceber quem vai ao telemóvel e todos sabemos que só há duas estratégias para evitarmos acidentes com estes condutores-conversadores: ou abrandamos e os deixamos seguir muito à nossa frente, ou apressamo-nos a passar esses sujeitos distraídos e potencialmente assassinos. Naquela manhã, optei por lhe dar espaço e abrandei porque não havia visibilidade e chovia muito.

Passados brevíssimos minutos vi o que era mais previsível que acontecesse: espetou-se na rotunda. Não foi capaz de dominar o carro na curva mais alargada que aquela rotunda exige e ficou completamente atravessado. Não foi um acidente brutal nem provocou choques em cadeia porque instintivamente todos tínhamos abrandado por vermos que ia a teclar enquanto guiava sem visibilidade nenhuma, numa estrada molhada e sem aderência, mas foi um espetáculo triste de ver. A custo lá se recompôs e seguiu caminho, com aquele vago embaraço dos condutores que se sentem mais parvos por terem tido plateia num mau passo, do que pela culpa de uma conduta grave que poderia ter feito vítimas.

A outra cena, vi-a da janela de uma farmácia no centro da cidade. Esta farmácia fica mesmo na esquina entre duas avenidas de muito trânsito e tem uma montra de vidro gigante, que abre para os quatro caminhos estratégicos, onde a combinação de semáforos tem ciência e, acima de tudo, onde existe o clássico duplo semáforo, ora verde ora amarelo para os peões. Aliás, como sabemos, nos cruzamentos esta conjugação de semáforos pode estar ao mesmo tempo verde e amarelo.

Num destes momentos em que esperava pela minha vez vi um rapaz guiar sem olhar para a estrada até parar (por instinto?!) no semáforo. Estou a falar de cerca de 100m entre carros, em que não levantou os olhos do telemóvel e deu nas vistas por isso mesmo. Vi eu e vimos todos os que ali estávamos. Durante o tempo em que o semáforo esteve encarnado, continuou a teclar e nunca, mas nunca mesmo, desviou os olhos do ecrã, que levava na mão direita, abaixo do nível dos vidros, não fosse o diabo tecê-las e algum polícia aparecesse de repente. Todos conhecemos este nível ‘invisível’ e todos sabemos como é fácil deixar cair o telemóvel ou atirá-lo rapidamente para um canto do carro, se alguma autoridade se apresenta inesperada e ‘inoportunamente’.

O rapaz teclava e sorria sozinho. Esteve exclusivamente concentrado no telemóvel, até que o semáforo voltou a estar verde e, pasmo dos pasmos, retomou a marcha mantendo o olhar baixo e seguindo em frente, porventura guiado por outros sentidos que não a visão. Assim, tal e qual. A cena foi de tal maneira insólita que várias pessoas seguiram em silêncio o trajeto do carro até que ele chegou à esquina e embateu num poste que sustenta um cartaz publicitário. Assim mesmo. A brutalidade do impacto foi chocante, porque ele realmente ainda não ia muito depressa e até subiu o passeio esquinado, mas ficou ferido na cabeça e teve que ser retirado do carro.

Não fez outras vítimas, felizmente, mas estava mais que visto que alguma coisa iria acontecer mais à frente. Aconteceu.

Penso que ninguém, absolutamente ninguém, está inocente no que toca a atender e falar ao telemóvel, a ver mensagens e até a responder enquanto guia. Antigamente (conceito que hoje em dia se pode aplicar a um par de anos atrás, note-se) ainda havia alguma contenção e, quem sabe, medo de provocar acidentes e agravar multas, mas hoje em dia tudo se faz à vista de todos. Até dos polícias de trânsito e demais autoridades.

Não só usamos o telemóvel no carro como se estivéssemos na sala de nossa casa, como lhe acrescentámos apps maravilhosas com funções espetaculares e indispensáveis. Falo do Waze, mas não só. Falo de mil outras possibilidades que nos facilitam a vida e nos conduzem diretamente ao destino, mas também nos podem guiar para a morte ou atirar-nos uns bons meses ou anos para hospitais e clínicas de reabilitação como Alcoitão.

Sabemos que as multas vão pesar cada vez mais e ainda bem, mas nem essa certeza é suficientemente persuasora para mudarmos hábitos. Falo por mim, que uso o sistema de alta voz do carro para me permitir fazer as chamadas em trânsito que não consegui fazer durante o dia de trabalho. Permaneço desligada muitas horas do dia e, depois, tento (tentava!) recuperar as chamadas perdidas do dia ou os imperativos pessoais e familiares nos percursos mais e menos longos. Não me lembro de teclar enquanto guio, mas tal como todos os outros, também tentei ver muitas vezes SMS para perceber o sentido e a urgência. E fiz e devolvi muitas chamadas que não só não eram urgentes, como podiam esperar que chegasse a casa. Ou voltasse ao escritório no dia seguinte.

Enfim, sem moralismos e apenas com a consciência cada dia mais afinada de que podemos morrer e matar ‘só’ por estarmos a teclar enquanto vamos a guiar, dei comigo a fazer o meu primeiro propósito de rentrée, que também é um propósito de vida (pela minha vida e pela dos outros, pois o meu maior terror é provocar a morte a alguém ou deixar sequelas para sempre!): enquanto guio, o telemóvel vai desligado e dentro do porta-luvas. Se preciso do Waze para chegar ao destino, marco tudo antes de arrancar e deixo-o no modo voz, para seguir as orientações sem ter que olhar para o ecrã. E sempre usando o sistema do carro, claro.

Não é um propósito fácil e nem sei se será sempre possível (vi agora, em mais uma sucessão de internamentos e urgências familiares, que muitas vezes fui obrigada a parar na berma ou numa bomba de gasolina para atender e fazer chamadas imperativas), mas vou tentar manter-me fiel e reeducar-me enquanto guio, até porque agora temos na estrada dezenas, centenas de peões montados em trotinetas, sem capacete, a guiar na mão e em contramão, e todos os olhos são poucos. Nenhuma atenção é demais quando estamos ao volante, essa é uma certeza universal que temos alguma inclinação a desvalorizar.

Espero sinceramente manter o braço de ferro e a aposta comigo mesma, até porque a libertação que passei a sentir, a partir do momento em que deixei de me comportar como escrava do telemóvel, é fabulosa. Ganha-se em concentração e foco, num tempo em que toda a atenção é pouca para evitar ou contornar aqueles que, não tendo sistema de alta voz nem kit mãos livres, não podem ou não querem largar os telemóveis enquanto guiam. Confesso que tenho cada vez mais medo de quem pousa, sempre e só, uma mão no volante e se esquece também de pousar os olhos no vidro da frente e ignora olimpicamente os espelhos laterais e retrovisor, porque guia de olhos baixos, mais direcionados para o ecrã do telemóvel. Fujo deles, mas acima de tudo estou a tentar fugir de ser um como eles.