Por onde anda Rui Rio? Dir-se-ia desaparecido em combate se soubéssemos em que combate se empenhou. Ou talvez não. O líder do PSD tem andado por estes dias a tratar das autárquicas. Nada que surpreenda – afinal ele disse ao que vinha logo quando foi eleito presidente dos social-democratas. Até antes. Queria um partido com mais autarcas. Ex-autarca, vê no enraizamento territorial a chave do sucesso político e não deixa de ter razão.
Mas só parte da razão: as autárquicas não se ganham na mercearia, que até podia ter passado por oferecer uma amnistia a Isaltino Morais para poder contabilizar Oeiras na coluna dos municípios conquistados (aparentemente sem êxito) ou deixando que fossem namorar o arqui-inimigo Rui Moreira depois de lhe ter passado uma rasteira no Parlamento ao aprovar uma lei iníqua sobre as candidaturas independentes. As autárquicas também não se ganham fugindo a estabelecer objectivos e parecendo ficar satisfeito se no fim eleger mais vereadores e mais presidentes de junta. As autárquicas ganham-se com bons candidatos (veremos quantos Rui Rio mobiliza, pois até ao momento tem pouco ou nada para mostrar) e com uma boa presença no palco nacional. Uma coisa vai com a outra.
Ora desde que a pandemia se abateu sobre o país que Rio levou ainda mais longe a sua política de “oposição suave”, ou mesmo de mera colaboração à distância, aqui e ali interrompida por um arrufo, pouco mais do que mera prova de vida, em nenhum momento parecendo preocupado em denunciar, com a clareza e a persistência que que se impunham, uma gestão errática e que se revelou calamitosa da crise sanitária. Porventura também ele iludido com o “milagre português”, ou atordoado com a ideia da “unidade nacional” para lidar com “o bicho”, achou que o povo português apreciaria mais essa atitude falsamente “responsável” do que a de desempenhar um papel crítico, pois desde o início que era necessário, no mínimo, um olhar crítico.
Há quem ache que, paciente, Rio espera. Que acredita na velha máxima de que as oposições não ganham eleições, são os governos que as perdem, e tem esperança que a crise que aí vem desgaste os socialistas. A ele bastar-lhe-ia então estar no lugar certo na hora certa para herdar a cadeira de São Bento.
Triste oposição que não tem outra ambição, triste líder que não tem outra visão. E pouca sorte que deverá ter, pois nada indica que a sorte lhe sorria. Não que o país vá renascer das cinzas com o dinheiro que virá da bazuca – eu estou mais com as previsões daqueles, como Luís Aguiar-Conraria, que apenas anteveem que “haverá́ dinheiro suficiente para enriquecer os donos do regime, ao mesmo tempo que os restos serão suficientes para manter o resto do pais satisfeito, num torpor medíocre” –, mas porque entre esses milhões e a euforia pós-confinamento haverá alento suficiente para esta mediocridade se manter.
Até porque a não-oposição que Rio protagoniza contribui para ela. Assim como contribui para ela o sectarismo que se instalou nos últimos anos no espaço não socialista e que tem dilacerado o PSD e o CDS ao mesmo tempo que não ajuda a que se entenda e integre novos movimentos políticos, pense-se o que se pense deles, como a Iniciativa Liberal e o Chega. Pior do que isso: em vez de perceberem que estas duas novas forças políticas trouxeram para o debate político temas que antes eram interditos, que ao fazerem-no desafiaram as convenções estabelecidas pelo pensamento dominante, que com isso foram ao encontro de sectores do eleitorado a que antes os partidos tradicionais do centro-direita não chegavam, e que isso pode somar em vez de subtrair, as lideranças tradicionais, com as PSD à cabeça, não têm feito mais do que fecharem-se na sua concha.
O debate político em Portugal está cheio de interditos que são impostos no espaço mediático onde há coisas que se podem dizer e outras que não se podem dizer. Até há muito pouco tempo era quase impossível defender ideia liberais sem ser imediatamente proscrito como um “neoliberal” insensível capaz de degolar o primeiro pobre que encontrasse ao virar de uma esquina. Nos primeiros debates que teve no Parlamento com Cotrim de Figueiredo o primeiro-ministro ainda achava que o podia descartar simplesmente chamando-lhe liberal, mas foi percebendo que esse “insulto” já não é “insulto”. Porquê? Porque houve quem tivesse coragem de remar contra a maré.
Alguns dos temas que são bandeiras do Chega são igualmente interditos – ou tabus se preferirem. A circunstância de serem temas do Chega e frequentemente este partido o tratar de um forma agressiva não faz com que deixem de ser temas, não faz com que os problemas que pré-existem desapareçam nem desobriga os demais de os tratar e, sobretudo, de propor outras abordagens. Falemos de corrupção, insegurança ou integração das comunidades ciganas. Ou de das polémicas “fracturantes” que tanto apaixonam a nova esquerda.
O que se passa, o que se passou durante demasiado tempo, é que há uma grande cobardia intelectual, ou mesmo uma cobardia moral. Uma submissão à ordem do dia mediática e cultural, sem coragem para a afrontar, para remar contra a corrente, para desafiar as ideias feitas e bonitinhas que podem parecer dominantes mas muitas vezes só são dominantes entre as elites com acesso aos órgãos de informação e só são bonitinhas porque ninguém as contestou de forma séria, pensada e moderna.
Mas enquanto isso não for feito qualquer maioria não socialista está sempre submetida ao fogo de barragem de uma ignara e auto-imposta “maioria moral” que se julga dona do país e das consciências. Pior, se possível: qualquer maioria política conjuntural que nestas circunstâncias e neste clima minado eventualmente se forme para tratar dos despojos de uma crise e para voltar a lidar com uma bancarrota nada mais fará do que verificar que não dispõe da necessária maioria social que a apoie para realizar o que quer que seja. Para isso é melhor continuar nas bancadas da oposição.
Não creio pois que o problema se resolva com um qualquer messias saído de uma manhã de nevoeiro. O caminho terá antes de ser feito um pouco como já está a ser feito, por muito estranho que tal possa parecer: com um refazer da casa com novos tijolos, alguns deles bem díspares e dissonantes, falando de problemas diferentes e dirigindo-se a eleitorados distintos, mas sem receio de tocar no intocável.
Neste tempo de ruínas qualquer nova maioria terá inevitavelmente de falar para os descontentes e para os que desacreditaram no que “os políticos” lhes têm oferecido, mas também terá de falar para os que são ainda demasiado novos para terem chegado a ter esperança, dando-lhes a perspectiva de algo diferente. Neste tempo de ruínas não me surpreende, antes espero, que sejam partidos diferentes a fazer esses discursos diferentes.
O que me surpreende é outra coisa: é a preocupação com a mercearia – a de Rui Rio mas não só –, o foco em guerras intestinas – as do CDS como as que nunca desapareceram no PSD – e a urgência das sentenças de excomunhão de quem não segue a “linha justa”, quando a preocupação deveria ser com acordar o país, com sacudir este torpor, com chegar ao povo que a esquerda abandonou, com tratar da igualdade que realmente importa, com chamar aos dias que vivemos aquilo que eles já são, os dias de uma permanente mentira “costista”. Sim, porque já vivemos o pós-geringonça, pois desse acordo só restam estilhaços.
Demos pois atenção ao sistema que vigora. Demos atenção ao que interessa, ao “costismo” — é bom começar a chamar as doenças pelo nome.
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