O atual Governo tomou posse há pouco mais de seis meses. Não há memória de em tão curto espaço de tempo se assistir a um avolumar de casos, imprecisões e mal-entendidos como os que se vêm registando na atual legislatura. Desde os inúmeros problemas registados no Serviço Nacional de Saúde que levaram à demissão da anterior ministra; ao rocambolesco anúncio da localização do novo aeroporto que redundou na humilhação pública do ministro das Infraestruturas; até, mais recentemente, à atribuição pouco clara de fundos comunitários a uma sociedade pertença de um familiar direto da ministra que tutela a pasta da coesão territorial, responsável pela distribuição de verbas comunitárias. São várias, e recorrentes, as peripécias que não abonam a favor da credibilidade de alguns membros do executivo.

Mas é a TAP e a reabertura do dossier da privatização que, neste contexto de desarticulação governativa, suscita maior interesse e até perplexidade. Anunciada pelo ministro que publicamente mais se fez ouvir contra a decisão de privatização tomada pelo Governo de Passos Coelho em 2015, esta é, até à data, a decisão mais incompreensível do executivo.

A 29 de setembro, o primeiro-ministro anunciou que era intenção do governo avançar com a privatização da transportadora nacional num prazo de 12 meses. Admitiu até que seria provável que o Estado viesse a perder dinheiro com o processo de alienação.

Quando, em 2016, António Costa se tornou primeiro-ministro, herdou uma TAP privatizada, em processo de reorganização estrutural e com uma equipa de gestão renovada. Ao assumir o cargo, uma das primeiras decisões que tomou, e porventura a mais simbólica, foi precisamente a reversão parcial do processo que havia sido conduzido pelo governo anterior, reassumindo o Estado 50% do capital da empresa.

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Os argumentos então usados faziam crer que era fundamental manter a TAP na esfera de controlo do Estado por se tratar de uma marca estratégica para o turismo nacional e uma das maiores exportadoras portuguesas, responsável pela entrada de milhares de turistas no país, além de assegurar mais de 10 mil postos de trabalho, que só estariam salvaguardados se se mantivessem sob o manto protetor do Estado.

Foram também estes argumentos que serviram de justificação aos mais de três mil milhões de euros injetados na empresa no âmbito do processo de reestruturação e de renacionalização politicamente patrocinado pelo ministro das infraestruturas e dos transportes. Uma narrativa que sustentou a inevitabilidade da injeção de uma enormidade de dinheiro público numa empresa cuja única prova de vida dada no passado foram os resultados negativos, um histórico de prejuízos acumulados e uma gestão operacional discutível. Um longo e penoso processo de capitalização que terá, na decorrência de 2022, um ano marcado pela subida da inflação e pela perda generalizada de poder de compra dos portugueses, o seu epílogo com a disponibilização de mais uma tranche, neste caso de 990 milhões de euros: a última fatia dos 3,2 mil milhões.

Ora, aqui chegados e conhecidas as recentes declarações do primeiro-ministro, resulta claro que a essencialidade do controlo público da companhia não é assim tão fundamental quanto isso, que o fator estratégico parece, agora, já ser compaginável com a entrada de investimento privado no capital e que os postos de trabalho estarão também assegurados independentemente da proveniência privada dos fundos necessários para assegurar os salários. Hoje, ao fim de sete anos, e depois de muitos milhões de euros, descobriu-se que não virá mal ao mundo se a TAP passar “para as mãos de privados”, de forma célere e num processo expedito, mesmo que na sua decorrência os contribuintes portugueses acabem por perder algum do dinheiro que lá enterraram. Pedro Nuno explicar-nos-á, a seu tempo e com idêntica bonomia com que defendeu exatamente o contrário, as imensas virtudes desta opção.

Estupefação e incredulidade, é o mínimo que se pode dizer sobre esta inversão de marcha ideológica. Uma nacionalização que era absolutamente essencial para o país e definidora de uma nova dimensão de políticas públicas centradas na intervenção do Estado na economia, não sobreviveu para lá de umas tantas proclamações mais entusiasmadas à esquerda.

Ainda assim, tudo terminaria bem se ao longo do percurso e por entre as diatribes de alguns responsáveis políticos, não tivessem voado 3,2 mil milhões do erário público.