“Não ser carne nem peixe” é um bom elogio nos dias que correm. Ainda para mais se ser carne é achar que as 24 horas do dia 25 de Abril de 74 chegaram para criar instituições democráticas em Portugal, e ser peixe é considerar que “a madrugada que eu esperava” destruiu o país. Do mesmo modo se dirá se ser carne é achar que a “religião envenena tudo”, e ser peixe é achar que esta é incapaz de errar; se ser carne é considerar que as sociedades ocidentais devem viver em pleno clima de “reparação histórica”, e ser peixe é avaliar o nosso passado como impoluto; se ser carne é, ainda, igualar as relações humanas ao “domínio do patriarcado”, e ser peixe é querer reabilitar o estatuto da “dona de casa”; se ser carne é considerar que se deviam acabar com as fronteiras, e ser peixe é equivaler a “política de portas abertas” à entrada de exércitos de terroristas; se ser carne é, por fim, defender que os subsídios acabam com a pobreza, e ser peixe é argumentar que alimentam mandriões.

Como Luís de Freitas Branco expõem no livro A revolução antes da revolução, um dos PIDE´s que acompanhava o primeiro festival de Vilar de Mouros terá registado que perante o evento se viam “crianças de olhar parado. Indiferentes a tudo. Grupos de homens de mão na mão a dançar na roda”, uma população “revoltada contra os cabeludos”, em que “alguns gritaram ‘vai trabalhar’”.

Ora, não se sabe o que os “cabeludos” terão respondido, mas tendo família em Vilar de Mouros imagino que não tenham sido declarações simpáticas. Contudo, o clima social do festival estendeu-se do Alto-Minho ao resto do mundo. Vilar de Mouros ficou dividida entre os “cabeludos” e os “pacóvios”, tal como, hoje, Portugal fica cada vez mais dividido entre “fascistas” e “estalinistas”, até ao ponto em que, para alguns dos “fascistas”, a alternativa será mesmo tornar-se fascista, e para alguns dos “estalinistas” tornar-se mesmo um estalinista. Os que sobrarem estão destinados à terra de ninguém.

Entre 1826 e 1834, Portugal esteve dividido numa guerra civil que opôs Miguelistas e Liberais. Mas a fratura não se deveu tanto às diferenças entre quem preferia ou criticava uma sociedade corporativa e hierárquica. Isso não chega para explicar a sua origem. Na verdade, o seu começo e a sua dimensão violenta terá dependido talvez mais das caricaturas feitas de ambos os lados. Seria menos provável ouvir alguém dizer que se opunha ao liberalismo por considerar “que a alteração da estrutura de propriedade poderia trazer consequências danosas à economia portuguesa”, do que quem defendia que os liberais eram “uma raça de libertinos”. Um slogan tão curto e direto, como incendiário e redutor. Não me parece que seja muito diferente hoje em dia. Ser moderado, ou seja, perceber as ambivalências, os ângulos mortos, os pontos de fuga, é ser confuso. Colocar um “mas”, uma nuance, uma modulação, é uma traição. Pedir um esclarecimento, colocar uma dúvida, uma audácia. Considerar quem não pensa como eu um alienado, um imperativo.

Na escola, uma das primeiras formas de mostrar o que é a filosofia é explicar que ela surgiu da capacidade de colocar em questão as mitologias estabelecidas, através de perguntas e da dúvida. Nessa altura é comum introduzir a frase de Sócrates onde, através da pena de Platão, ele afirma: “só sei que nada sei”, apontando-se para esse momento como o fundamento do método filosófico, através de um questionamento permanente. Ora, para isso não bastam as dúvidas, muito menos se elas existem para construir mitologias tão ou mais fechadas e arcanas que as anteriores, onde a metodologia é “ou eu, ou o mundo”, ou ainda “vamos partir tudo”.

É que, ainda assim – mas, claro, que este raciocínio é estranho a um radical – o mundo não é um enorme ringue de boxe, este não é o último assalto, e o ser humano é um bicho estranhamente resistente, para quem teve já tantas ameaças de apocalipse iminente. Trata-se da clara inversão da habitual narrativa cinematográfica. Normalmente há sempre um maluquinho que vem até à civilização avisar que a humanidade vai acabar. Hoje em dia, o doido é quem diz: não se preocupe, beba mais um copo.

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