O acórdão 90/2109 do Tribunal Constitucional, invocado pelo juiz Ivo Rosa para fundamentar, na sua decisão instrutória da Operação Marquês, a sua interpretação da contagem do prazo de prescrição dos crimes de corrupção de que José Sócrates era acusado pelo Ministério Público, merece escrutínio e reflexão públicas.

Esse acórdão teve por base o recurso para o Tribunal Constitucional (TC) de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) sobre um crime de corrupção activa, e o seu objecto foi a «interpretação dos artigos 119.º, n.º 1 e 374.º, n.º 1, ambos do Código Penal, (…) no sentido de que o prazo de prescrição do crime de corrupção ativa é contado a partir da data em que ocorra a entrega de uma dada vantagem ao funcionário, e não a partir da data em que ocorra a promessa dessa vantagem».

Na sua decisão, o STJ entendeu que «o prazo prescricional dos crimes de corrupção, em causa nestes autos, só corre a partir da data do pagamento dos subornos ou do acto ou omissão contrário aos deveres do cargo do agente passivo do crime (…)», e que «o crime de corrupção activa tem-se por formalmente consumado com a mera promessa de vantagem (…) mas o início do prazo prescricional  (…) não se verifica desde o dia da sua consumação formal. A lei no n.º 1 do art. 119.º do CP não pode deixar de ser interpretado e aplicado, tendo em vista a consumação material do crime ou terminação.»

Na opinião do recorrente dessa decisão, tal entendimento estaria «em desconformidade com o princípio da legalidade criminal» (ponto 32 do acórdão do TC), redundando «na violação do artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa» (ponto 33 do acórdão do TC).

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Tal alegada violação do artigo 29.°, n.°s 1 e 3, da Constituição tornaria admissível o recurso para o TC ao abrigo do artigo 280.°, n.° 1 b) da Constituição, que reza:

« 1. Cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais:

(…)

b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.»

Por sua vez, o artigo 29.°, n.°s 1 e 3, da Constituição diz o seguinte:

«1. Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.

(…)

3. Não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior.»

Enuncia, assim, o princípio da legalidade criminal: ninguém pode ser julgado criminalmente senão com base numa lei pré-existente que declare punível o acto ou omissão alegados; tão-pouco pode ser aplicada a alguém uma pena que não esteja já prescrita («cominada») numa lei pré-existente.

E o que dizem os artigos 119.°, n.° 1 e 374, n.° 1, do Código Penal, cuja interpretação é objecto do acórdão do TC?

O artigo 119.°, n.° 1, reza : «O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado.» ; e o artigo 374.°, n.° 1, reza: «Quem (…) der ou prometer a funcionário (…) vantagem patrimonial ou não patrimonial com o fim indicado no n.º 1 do artigo 373.º, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.». Por razões de clareza, acrescente-se que o fim indicado no n.° 1 do artigo 373.° do mesmo Código é «(…) a prática de um qualquer acto ou omissão contrários aos deveres do cargo (…)».

A questão que o acórdão do Tribunal Constitucional desde logo suscita é a seguinte: podem os artigos 119.°, n.° 1, e 374.°, n.° 1, do Código Penal violar o princípio da legalidade criminal?

Quando é o próprio Código Penal a lei pré-existente que declara punível o crime de corrupção activa em apreço e determina a respectiva pena (no seu artigo 374.°, n.° 1); e que estipula o momento em que o prazo de prescrição desse crime tem início: «O dia em que o facto se tiver consumado» (no seu artigo 119.°, n.° 1), a resposta só pode ser uma: não. Não só o Código Penal, e esses dois artigos em particular, não violam o princípio da legalidade criminal, como eles próprios o consubstanciam.

O acórdão procura, assim, apurar não a eventual violação desse princípio constitucional pelos dois referidos artigos do Código Penal, mas a legitimidade constitucional da interpretação desses dois artigos «no sentido de que o prazo de prescrição do crime de corrupção ativa é contado a partir da data em que ocorra a entrega de uma dada vantagem ao funcionário, e não a partir da data em que ocorra a promessa dessa vantagem».

Por outras palavras, procura apurar se a interpretação feita pelo Supremo Tribunal de Justiça desses dois artigos “extravasa a letra da lei penal(ponto 40 do acórdão), caso em que consubstanciaria uma “lei nova”, violando, por isso, o princípio da legalidade.

Partindo da literalidade do artigo 374.°, n.° 1, do Código Penal – “Quem (…) der ou prometer a funcionário (…) vantagem patrimonial ou não patrimonial (…)” – e da “dupla hipótese de preenchimento («der ou prometer»)” do tipo de crime em apreço, declara que “nos casos em que antes da entrega ocorra uma promessa de entrega, o crime dá-se por consumado com a “ação de prometer”” (Ponto 42 do acórdão).

Ou seja, depois de admitir que o crime se pode concretizar de duas formas distintas, como aliás a lei afirma expressamente, ao utilizar a conjunção alternativa “ou” – uma, dar, ou outra, prometer – (sublinhado nosso), o acórdão opta por valorizar uma (“prometer”)  em detrimento de outra (“dar”), nos casos em que uma promessa de entrega anteceda a entrega, declarando o crime consumado com a mera acção de prometer.

Ora, no caso em que uma promessa e uma entrega consumam o crime, não estamos já em presença de uma “dupla hipótese de preenchimento”, consubstanciável através da mera promessa de um suborno ou através da entrega efectiva de um suborno. Estamos, antes, em presença de uma consumação que, incluindo a promessa e a entrega, culmina na entrega, concretizando esta última o acto corruptivo.

Assim, o acórdão do Tribunal Constitucional não só falha na sua análise lógico-linguística do artigo 374.°, n.° 1, do Código Penal, como, partindo daí, determina uma interpretação redutora do seu pleno sentido, que deturpa a letra da lei.

Dessa interpretação decorreria também uma única interpretação possível para o artigo 119.°, n.° 1, do Código Penal: se o acórdão dá o crime por consumado “com a “ação de prometer”, e se, como diz o  artigo 119.°, n.° 1, do Código Penal, o prazo de prescrição corre  desde o dia em que o facto se tiver consumado.”, o prazo de prescrição teria necessariamente de ter início “com a “ação de prometer”.

Deturpando a letra da lei, fazendo-a dizer o que não diz  – compare-se o que declara no seu ponto 49: “(…) se, nos termos do enunciado normativo constante do n.º 1 do artigo 374.º do Código Penal, o crime de corrupção ativa é tido por consumado com a promessa de entrega (…)” com a letra do artigo 374.°, n.° 1, do Código Penal: “Quem (…) der ou prometer a funcionário (…) vantagem patrimonial ou não patrimonial (…)” , o acórdão do Tribunal Constitucional conclui, declarando “inconstitucional, por violação do princípio da legalidade criminal, os artigos 119.º, n.º 1 e 374.º, n.º 1, ambos do Código Penal, (…) quando interpretados no sentido de que o prazo de prescrição do crime de corrupção ativa é contado a partir da data em que ocorra a entrega de uma dada vantagem ao funcionário, e não a partir da data em que ocorra a promessa dessa vantagem.”

Pretende com isso dizer, acertada a concordância de número, que julga “inconstitucionais”, “por violação do princípio da legalidade criminal, os artigos 119.º, n.º 1 e 374.º, n.º 1, ambos do Código Penal, (…) quando interpretados no sentido  (…)”. Mas nem são sequer os artigos que julga “inconstitucionais” (o que seria absurdo, como já acima demonstrado), antes a interpretação desses artigos no sentido feito pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Subjaz a este acórdão uma preocupação em defender as garantias dos arguidos, patente no seu ponto 50: “Deste modo, o princípio da legalidade criminal verá a sua aplicação reforçada nos casos em que “funcione” como garantia do arguido.

Acontece que a sua interpretação do artigo 374.°, n.° 1, do Código Penal, que o leva a declarar que “nos casos em que antes da entrega ocorra uma promessa de entrega, o crime [se] dá por consumado com a “ação de prometer”, tornaria praticamente impossível provar o crime de corrupção activa nesses casos, pela impossibilidade quase absoluta de determinar o momento em que o corruptor promete ao corrompido uma vantagem: uma tal promessa “consuma-se” verbalmente, sem testemunhas, sem deixar rasto. Não há memória de que alguma vez se tenha “consumado” através de declaração notarial.

Se vingasse tal interpretação do artigo 374.°, n.° 1, do Código Penal, ela garantiria a quase total impunidade do crime de corrupção activa.

Mais, permitiria que, num crime de corrupção activa em que a uma promessa de suborno se fossem sucedendo múltiplas entregas ao longo do tempo, a dado momento o crime estivesse já prescrito enquanto as entregas se continuariam a realizar.

Convirá recordar que os crimes de corrupção têm vítimas, mesmo se elas são geralmente ignoradas na consideração pública de tais crimes. E essas vítimas não são uma abstracção, são o conjunto dos cidadãos cujo bem e interesse o corruptor estava legalmente impedido de lesar e o corrompido tinha por dever proteger.

Ora a interpretação que o acórdão faz do artigo 374.°, n.° 1, do Código Penal desequilibra os pratos da balança em favor do alegado corruptor e em desfavor das vítimas, já que tornaria quase impossível provar e punir o dano por estas sofrido.

Essa interpretação é, como acima demonstrado, redutora do pleno sentido desse artigo do Código Penal, desvirtuando-o. Contudo, afirma-se como a sua interpretação “correcta”. Tudo isto abrindo a porta a que um crime se pudesse continuar a praticar estando já prescrito.

Além disso, ao sobrepor o seu entendimento do artigo 374.°, n.° 1,  do Código Penal ao entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, o Tribunal Constitucional “agiu como se  (…) tivesse competência qualificada em matéria de interpretação da lei ordinária, esvaziando totalmente a competência dos tribunais judiciais de interpretação do direito infraconstitucional.”, como afirmou a juíza Fátima Mata-Mouros na sua declaração de voto vencido nesse acórdão.

E, nisso, exorbitou a sua competência. Pois como reza o artigo 221.° da Constituição, «O Tribunal Constitucional é o tribunal ao qual compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional.». Por outras palavras, e voltando a citar a mesma juíza na sua declaração de voto, “A competência específica do Tribunal Constitucional é a interpretação da Constituição. Pertence aos tribunais comuns a interpretação do direito ordinário.”

Eis o que levanta, pelo menos, uma outra questão: se, como diz o artigo 222.°, n.° 5, da Constituição, «Os juízes do Tribunal Constitucional gozam das garantias de independência, inamovibilidade, imparcialidade e irresponsabilidade (…)», quem sindica as suas decisões, sujeitas ao erro, e o funcionamento do TC no quadro das suas competências? E, em caso de erro nas suas decisões ou de exorbitância dessas competências, quem os corrije?