As recentes declarações do Primeiro-Ministro António Costa, «sem querer diminuir o que preocupa muitos comentadores, eu sinceramente o que sinto que preocupa as pessoas são temas bastante diferentes. Ando na rua e oiço o que as pessoas dizem», postulam um laço privilegiado entre o representante e os representados. Seria ele o representante insigne das pessoas e dos seus problemas, ele que as escuta, para lá de qualquer mediação, numa autenticidade plena. Anda na rua, não é um político de gabinete: António Costa é as pessoas, as pessoas são António Costa. Os casos de corrupção, o último no ministério da Defesa, não entram no campo das preocupações reais das pessoas. As pessoas preocupam-se com o dinheirinho e a saudinha; esbulhadas de dimensão política, colectiva, são relegadas para a esfera dos interesses privados. O Estado e as instituições não são para elas. São, quando muito, para os comentadores, essa estranha obsessão de António Costa que, na alocução em que recusou a demissão de João Galamba, começou três fases com os «comentadores» para depois, e só depois, se referir aos agentes políticos (aqui, 1’00, 9’30, 19’24).

Este circuito fechado que se funda na identidade entre representante e representados imuniza-se contra toda e qualquer crítica, tanto de baixo como de cima, uma vez que suprime a distância inerente à acção política, distância essa que se encarna nas instituições. O povo – na linguagem de António Costa, as pessoas – é estranho às instituições, como ele mesmo o é. Não é de excluir, aliás, que a acusação que preferencialmente dirige aos adversários de todos os quadrantes, a de populismo, tenha um carácter projectivo com vista a apaziguar a sua consciência – ele sabe o que faz.

Socrático de cepa, António Costa não percebeu que, em 2015, ao desrespeitar a praxe do regime, se tornou um condottiere das instituições. Serviu-se delas para os seus fins, como um banal panurgos – o habilidoso – pensando que o curso das coisas permanece o mesmo por ser movido pela força da inércia. Trata-se do típico erro do idiotismo; julga que os outros não passam de matéria manipulável a que pode impor os seus fins, reservando para si o lugar de sujeito agente. Um engano que traz outro no seu bojo. Como a política é por definição colectiva, António Costa também parece não ter percebido que desvalorizou o quadro institucional como medium de ação dos outros governantes, abrindo desse modo as portas a instrumentalizações de todas as espécies e feitios. Numa actividade sujeita a prazos curtos e sem referências institucionais, a matriz socrática, que hoje em dia impregna quase todo o PS, irrompeu sem freios. A corrupção e a desinstitucionalização, que baptizou, com sobranceria e nojo em partes iguais, «casos e casinhos», são tão-somente o desenvolvimento do mote que ele mesmo deu.

Nos tempos da geringonça, coadjuvado pelos bolcheviques tradicionais e pelos novos anabaptistas da sociedade de consumo, identitários e verdes, António Costa logrou dar-se ares de líder devido à execração comum de Passos Coelho. Não era um exército disciplinado, no entanto, visto de fora, suscitava a ilusão de ter um general. Talvez tenha ele mesmo sucumbido a essa ilusão – satrapeou, crendo-se um chefe. Mas na era da maioria absoluta, à frente de socráticos menores, não os lidera, eles não lhe dão ouvidos, a sua palavra não vincula ninguém – cada qual trata da sua vida como se não houvesse amanhã. À força de uma repetição anómala e contínua, as frases que António Costa profere cada vez que emerge de zonas escuras mais um «caso e casinho» – há muito a normalidade da vida política – tornaram-se baças, mecânicas, vazias. De Napoleon in rags passou a palhaço triste que actua numa sala vazia. Os deuses concederam-lhe o que desejou; como é seu hábito, fizeram-se pagar caro. A culpa, porém, é dele e só dele.

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