Uma das poucas coisas em que todos aqueles que se consideram liberais estão de acordo é na questão da tolerância. Esta questão começou por ser tratada a respeito da tolerância religiosa. Para os liberais, a primeira obra doutrinária sobre o assunto é a famosa Carta de John Locke. Mas a tolerância de Locke tinha limites e esses limites eram os da Reforma. Os católicos e os ateus estavam excluídos desta concórdia entre protestantes. Para Locke ambos – católicos e ateus – eram criaturas imorais pelas quais não tinha qualquer respeito e, sem respeito, não há tolerância.

A tolerância religiosa parece algo totalmente assumido pelas sociedades ocidentais. Só que, num mundo cada vez mais pós-cristão, são essencialmente os cristãos as vítimas actuais. Podemos culpar o anticlericalismo do século XIX, ou o ateísmo militante dos comunistas a partir da Revolução Russa pelas suas políticas abertamente intolerantes e até persecutórias. Mas essa será sempre uma explicação insuficiente. O número de crentes que frequentavam as igrejas já se vinha a reduzir há algumas décadas na Rússia pré-revolucionária. Na Europa Ocidental a situação não era muito diferente. Curiosamente começou pelos países protestantes, e só mais tarde chegou aos países católicos, que sofreram muito mais as agruras do anticlericalismo.

Um motivo muito mais credível para o abandono da fé foi o aumento da prosperidade. Uma das consequências desse aumento foi a correspondente redução da incerteza percebida pelos indivíduos, que passaram a dispor de mais meios para a enfrentar. No Ocidente, o futuro tornou-se, em grande medida, muito mais previsível para a população e esta julga-se menos necessitada de deuses sobrenaturais a quem pedir protecção ou favor. Ao abandonar o Cristianismo, a sociedade vai, naturalmente, abandonando as coisas que este considera sagradas, para as substituir por aquelas que o novo credo considere como tal. Se esse novo credo se fundar a partir de mitos anticristãos, é natural que a indiferença se vá transformando em hostilidade à medida que a população vá assimilando e incorporando esses mitos no seu sistema de crenças.

Não se pode dissociar o aumento da prosperidade do desenvolvimento da tecnologia propiciado pelos avanços científicos, principalmente em disciplinas como a Física, a Química e a Biologia (incluída nesta a Medicina). Outra coisa da qual não se pode dissociar esse aumento de prosperidade é do ambiente mais propenso à livre-iniciativa e ao desenvolvimento dos processos de mercado que orientam essas aplicações tecnológicas para a satisfação de um número crescente de fins específicos, para um maior número de indivíduos. Mas, estranhamente, há quem o faça.

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Estas duas revoluções – a comercial e a científica – começaram muito antes de os milagres da tecnologia as tornaram evidentes. Começaram, entre mosteiros e feiras, na neblina dos tempos medievais. A partir do Iluminismo e, com maior ímpeto, do Progressismo de meados do século XIX, um novo mito fundacional da nossa civilização começou a surgir. Um onde a Idade Moderna começa quando a Ciência se origina em oposição à Igreja e o Comércio passa a brotar da bondade dos governantes. O comércio terá que ficar para outra altura, mas a chamada Revolução Científica de inícios do século XVII, cuja fundação é mitologicamente atribuída a Galileu, tem especial relevância. Sobre isto escrevi também noutra ocasião. No mito, Galileu representa o triunfo da explicação matemática dos fenómenos científicos. Esta ideia não começou com ele, mas Galileu representa, talvez, o ponto de não-retorno.

No século XVI, a Matemática ainda era uma ciência inferior no panteão do conhecimento. “Ciência” era sinónimo de “verdade” e, por isso, a Teologia culminava o panteão. Porque era a mais verdadeira das ciências, aquela a que todas as outras disciplinas serviam. As conclusões teológicas eram o cume do conhecimento científico, porque incorporavam conhecimento de todas as áreas do saber. Mas o estatuto da Matemática já vinha em crescendo, principalmente da mão dos jesuítas. Ainda assim, a descoberta de novos corpos celestes por Galileu, um simples matemático, foi vista com preocupação e inveja por muitos cientistas da época, especialmente a partir do momento em que os louvores se transformaram em favores de príncipes e prelados.

As explicações de Galileu (e dos cientistas que se lhe seguiramKepler, Newton, Huygens, etc.) eram de uma verdade inferior àquela que a escolástica oferecia até então. Por inferior entenda-se uma explicação meramente descritiva que não inclui o porquê dos fenómenos, quanto mais o seu quê. Por isso a Matemática estava abaixo, não só da Teologia, mas também da Filosofia (leia-se Filosofia Natural ou Física) na hierarquia das ciências. A Igreja não teve nenhum problema em utilizar as Tabelas Prussianas para reformar o Calendário, quase três décadas antes do Sidereus Nuncius, apesar de esses cálculos se basearem no modelo de Copérnico. O modelo era útil, mas praticamente ninguém acreditava que fosse a realidade. Até 1616, não houve mais de uma dezena de astrólogos que acreditassem que o heliocentrismo era real. Esta opinião é reforçada por uma análise das primeiras duas cópias do Revolutionibus: o primeiro, onde está descrita a cosmologia heliocêntrica, está praticamente livre de marginália, ao contrário dos subsequentes, que estão profusamente anotados.

Mas com Galileu funda-se uma nova ciência. Uma que julga que, porque a Criação é racional, se pode reduzir a leis matemáticas. Uma ciência que retirava as suas conclusões directamente das observações, sem se preocupar com a causa, mas que produzia resultados tão apodicticamente certos como os da Teologia. Só a partir do século XIX é que a crença no Progresso e os encantos do Positivismo levaram a que cada vez mais intelectuais começassem a ponderar a possibilidade – metafísica – de que o método científico pudesse um dia resolver todas as questões que limitam a humanidade. Esta opinião foi bastante comum entre os círculos liberais protestantes britânicos e, em especial, norte americanos, onde se desenvolveu uma espécie de pragmatismo social baseado em métodos científicos aplicados às ciências sociais. Aquilo a que Hayek mais tarde chamou “Cientismo”.

De acreditar que a verdade científica era suficiente para a humanidade, a acreditar que a verdade científica é toda a Verdade há um pequeno passo, e foi esse pequeno passo que criou o Ateísmo militante. Os ateus militantes reformularam a propaganda anticatólica dos protestantes (entre a qual, o mito do enfrentamento da Igreja Católica contra a Ciência) e criaram uma propaganda anticristã e, mais genericamente, antiteísta com essas as teses protestantes. Esta propaganda ignora o motivo que levou Galileu, Newton e tantos notáveis cientistas a dedicar-se à ciência antes do século XIX. Galileu era um bom cristão, ou isso diziam até os seus inimigos. Para Newton, os seus Principia eram prova da existência de Deus. A ciência fazia-se ad maiorem Dei gloriam.

Paradoxalmente, o momento em que a Ciência começa a substituir o Cristianismo como Verdade é também aquele em que novos conhecimentos científicos começam a pôr em causa os anteriores. As novas descobertas na Genética, na Geologia, na Física, na Química, etc. punham em causa, não os dogmas supostamente imemoriais da religião, mas anteriores teorias perfeitamente estabelecidas e consensualmente aceites pela comunidade científica. Os epistemólogos começaram a chamar a atenção para esse facto: que qualquer explicação científica é contingente e, quando muito, uma melhor aproximação à verdade, mas não a verdade em si. Mas na sociedade, a ideia de que a Ciência é sinónimo de Verdade já se tinha expandido ao ponto de ser senão explícita, pelo menos tacitamente aceite.

É neste contexto que aparece o Novo Ateísmo, que baseia o seu proselitismo na superioridade moral do método científico sobre a fé. Quer dizer, a questão não é a utilidade da ciência e da tecnologia. A questão é afirmar que esta é moralmente superior. Para poder fazer tal afirmação os novos ateístas precisam de estabelecer, pelo menos três coisas: a) que as religiões em geral (e o Cristianismo em particular) são inerentemente más, b) que Deus não existe, só a ciência é verdadeira, e c) que as pessoas que vivem plenamente o ateísmo são melhores pessoas. Tudo coisas mais fáceis de dizer que de demonstrar.

Nunca está demais relembrar que a maior tragédia humanitária do século XX, as matanças perpetradas por regimes comunistas, foram-no por pessoas que a) implementaram oficialmente o ateísmo b) acreditaram que o seu modelo de sociedade era científico, e c) foram, em muitos casos, o objecto de um culto, como se de santos ou semi-divindades se tratassem. Mas o Novo Ateísmo passa uma esponja por cima disto com a desculpa de que “desta vez vai ser diferente”.

Porque, e isto é uma justificação comum, o método científico tem mecanismos de autocorrecção de que a religião não dispõe. Só um grande desconhecimento sobre a evolução da doutrina cristã pode fazer alguém assumir que esta representou um monólito de ideias eternas e sem qualquer desvio doutrinário desde que uma dúzia de pescadores desataram a proclamar que um tal Jesus tinha ressuscitado dos mortos. A mesma falta de critério necessária para julgar que a Ciência se produz através da acumulação do conhecimento e que não existem ideias científicas, outrora respeitáveis, entretanto atiradas para o caixote do lixo das pseudociências. Os mecanismos de correcção da Ciência não são diferentes dos de qualquer outra actividade humana, incluída a religião, e prendem-se em grande parte com a existência (ou não) de incentivos para tal e a inexistência de obstáculos que transpor. E a cristalização da Ciência como religião levou a que, ultimamente, em muitos casos esses obstáculos sejam formidáveis.

É a mesma ingenuidade com que imaginam ser mais racionais ou imunes à superstição que afectava os antigos. Quando as pessoas acreditavam em bruxarias, conjuros ou milagres, acreditavam que estas coisas eram parte do mundo natural. A palavra “sobrenatural” foi uma forma meio atabalhoada de distinguir as maravilhas de Deus da magia dos homens. A única palavra para descrever algo fora da natureza era contra natura, e isso, a obra de Deus não podia ser. De aí surge a palavra supra natura, acima da natureza, utilizada pelos escolásticos para descrever os milagres divinos. Mas tanto a magia dos homens como os milagres divinos eram não só naturais como racionais. Só a ignorância faz os modernos julgar que antes as pessoas acreditavam no irracional. A crença em milagres era a prova empírica da existência de Deus. Num tempo em que as pessoas acreditavam na existência de magia como algo óbvio, evidente, natural e racional é natural que, como hoje, necessitassem de provas para tal.

Muitos insistirão que a crendice necessária para reconhecer os milagres é maior que a que hoje se necessita para os rejeitar. Isso porque se julgam mais sábios que um monge escolástico do século XII, quando simplesmente puderam ver coisas que ele não pôde sequer imaginar. A Igreja sempre desconfiou dos milagres. Quando se reportava um, a Igreja mandava uma comissão investigadora para ter a certeza de que tal podia ser afirmado. Não punha em causa a existência de milagres, mas desacreditou muitos. Houve quem, na Igreja, tenha sido mais céptico com os milagres que muitos cientistas em relação à solidez do seu método. Não existe nenhum critério de demarcação que separe a produção científica da produção de outro tipo de conhecimento (incluído o pseudocientífico), mas os novos crentes querem acreditar que sim.

No passado, muitos oportunistas utilizaram milagres para proveito próprio ou como forma demagógica de agir sobre as multidões. Mas, é assim tão diferente na nova religião da Ciência? Viu-se nesta Pandemia quando se atiraram pela janela décadas de boas práticas e se decidiu administrar um fármaco experimental a milhões de pessoas saudáveis, obrigar as pessoas a levar panos na cara cuja eficácia nunca pode ser comprovada, fechar em casa milhões de indivíduos, impedir crianças de se socializarem, cancelar ou atrasar tratamentos indispensáveis e diagnósticos precoces que salvariam vidas. Tudo no altar de uma Ciência que se converteu em Deus para a maioria das pessoas. Só assim se explica que tenham acatado tamanhos atropelos à sua liberdade e, o que é mais importante, à dos outros. E para aqueles hereges que diziam que essas medidas eram incorrectas do ponto de vista científico ou ético, logo apareceram aqueles demagogos que os tildaram de negacionistas ou chalupas. À medida que a ciência (com minúscula) reforça as conclusões dos chalupas, os sumos-sacerdotes calam. Pedirão perdão dentro de 400 anos?

Quem julga que é a existência de religiões a causa de tantas tragédias no mundo, deveria olhar para o que vivemos nos últimos dois anos. Perceber que, como diria Chesterton, quando as pessoas deixam de acreditar em Deus passam a poder acreditar em qualquer coisa. O Ateísmo militante não vai alterar isso, por muita fé que nele se deposite. Os ateus deveriam recordar que a sua crença é outra religião e que a primeira tolerância é a tolerância religiosa. Sem respeito, nunca poderão ser verdadeiramente tolerantes.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.