A ignorância e a indigência política e ideológica é uma das causas e um dos sintomas de um “atraso português” que tem vindo a arrastar-se no tempo e a agravar-se. O reality show da campanha eleitoral – no seu frenesi de sondagens diárias, de pequenos sensacionalismos para evitar “expulsões da casa”, de cães, gatos e coelhos tirados das cartolas, de anúncios de remédios milagrosos, de polarizações e linhas vermelhas arbitrariamente traçadas e retraçadas – mostra bem o deserto de ideias em que, há muito, se tem vindo a transformar a sociedade portuguesa, excitada por aqueles que supostamente deviam liderá-la, informá-la e formá-la – políticos, jornalistas, comentadores.

Não digo que passemos a obrigar os dirigentes a fazer exames, exigindo-lhes conhecimentos mínimos de História geral e de História das Ideias para se candidatarem e para exercerem funções, como na velha China dos Mandarins; mas podemos e devemos exigir-lhes um mínimo de consciencialização do abismo ético, cultural, intelectual, político e civilizacional a que a presente alienação nos conduz.  E da necessidade de uma mudança.

Sei bem que isto das “revoluções culturais” ou das “mentalidades” é tão velho que chega a ser entediante. Desde os Estrangeirados do século XVIII até aos Seareiros, passando por Herculano, pelos “Vencidos da Vida” e pelos Integralistas, que a cura proposta para o “atraso português” é, invariavelmente, a exigência de um urgente “Sapere Aude!” kantiano, de uma revolução cultural ou de mentalidades capaz de mudar as coisas. E nem a doença era então tão grave, nem os antigos queixosos tinham a felicidade de poder recolher nos grandes media, nas redes sociais ou nas caixas de comentários tão abundantes e eloquentes provas da desgraça.

Mas serão as tentativas de revolucionar a cultura e as mentalidades – com livros, revistas, movimentos de ideias – ainda viáveis e eficazes? E será que alguma vez o foram? Será o trabalho das ideias, a batalha cultural, um esforço determinante, ou um entretenimento inútil?

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Tem-se dito que as rupturas políticas – as revoluções ou contra-revoluções – foram sempre precedidas de revoluções ou contra-revoluções intelectuais e culturais. Assim, as Luzes apareceriam como a causa principal da Revolução Francesa, ao destruírem as bases da legitimidade do Ancien Régime, por um processo de racionalismo descristianizante, que atingiu o Altar e, por inerência, o Trono. Em 1932, Daniel Mornet, em Origines intelectuelles de la Révolution Française, sustentava isso mesmo: que a revolução intelectual das Luzes fora a causa dos acontecimentos políticos e sociais conhecidos por Revolução Francesa. Mas em 1990 Roger Chartier, em Les Origines culturelles de la Révolution Française, virava o argumento ao contrário: as Luzes não tinham feito a Revolução – fora a Revolução que legitimara as Luzes. Ou seja, era a partir do real, do acontecido, da Revolução e do seu sucesso, que se tinham valorizado, a posteriori, os fios narrativos que a ela conduziam, que a explicavam e justificavam, isolando de um mundo de inúmeras possibilidades as correntes de pensamento que lhe tinham preparado o terreno.

O poder da palavra

O poder da palavra como criadora da mudança política foi investigado em muitas Histórias sobre as origens intelectuais da Revolução Francesa – de Alexis Tocqueville a Taine, de Georges Sorel a Daniel Mornet. A partir de Joseph de Maistre, de Bonald e do Abade Barruel as escolas contra-revolucionárias viram no jacobinismo, no terror, no dedo da franco-maçonaria e na acção anti-religiosa dos Filósofos e dos Libertinos a causa da destruição das crenças em que assentava a monarquia absoluta.

Mas mais importante do que tudo isso foi talvez o facto de as elites terem acriticamente mergulhado nos perversos encantos dos romances libertinos de Laclos, de Diderot ou do marquês de Argens, amigo de Voltaire e de Frederico da Prússia e autor do best-seller soft-porn, Thérèse Philosophe. Estes escritos lúdicos, mais elitistas ou mais populares, completavam as teses filosóficas e racionalistas sobre a origem e a legitimidade do poder político de Montesquieu, de Voltaire, de Rousseau e da Enciclopédia.

Embora haja algumas lendas sobre a influência e divulgação destes livros – o Contrato Social de Rousseau aparece muito menos nas bibliotecas da época do que o Emílio – não há dúvida que, no seu conjunto, esta literatura aparentemente apolítica serviu essencialmente para deslegitimar, nas próprias classes dominantes e beneficiárias do sistema, as bases do seu próprio poder.

Assim, quando eclodiu a Revolução, ninguém, incluindo o próprio Luís XVI, achava que Luís XVI fosse rei de França pela Graça de Deus; ou que isso fosse sequer importante.

Se lermos qualquer boa História da Revolução Francesa, percebemos claramente que os revolucionários – que se vão também devorando entre si, com os radicais, os Jacobinos, a Montanha, comendo os moderados, os Girondinos, e depois com os Jacobinos exterminando-se uns aos outros e, finalmente, liquidando o próprio Anjo da Virtude, Robespierre – estão firmemente convencidos da sua razão e superioridade moral, enquanto os partidários da ordem estabelecida estão possuídos por um sentimento de culpa, com Luís XVI sempre a ceder à intimidação e à violência. Havia consciência disto na época, como o mostra o panfleto de um tal Abbé Proyart, publicado em Londres, em 1800: “Louis XVI, Détroné Avant d’être Roi, ou Tableau des Causes necessitantes de la Révolution Française et de L’ébranlement De Tous Les Trônes”. Houve, pois, uma revolução intelectual – que desconstruiu o poder entre as elites – e depois uma revolução político-cultural – que materializou o descontentamento e o transformou em movimento e violência nas ruas de Paris.

E o que se passou na Revolução Francesa, passa-se em quase todas as revoluções decisivas. Quem ler politicamente Os Possessos de Dostoievsky vê aí o retrato dos revolucionários; e quem assim ler Tolstoi também encontra, nos seus aristocratas, inteligentes e bons, um complexo de culpa activo perante uma sociedade radicalmente estratificada, onde eles estão no topo: Pierre, em Guerra e Paz, quer redimir-se pela Franco-Maçonaria e André, promovendo os seus servos. O próprio Tolstoi, na segunda metade da sua longa vida, e sempre sem sair do seu lugar de “bom e velho senhor”, faz o mesmo. Berdayev, um profundo analista do Zeitgeist do século XIX russo, sustentava que os espíritos religiosamente mais influentes na Rússia de então não tinham sido os teólogos, mas escritores como Tolstoi. Tolstoi aplaudira a política do czar Alexandre II que, em 1856, anunciara a libertação dos servos, que aconteceria em 1861 – coisa que o escritor começaria a fazer nas suas propriedades de Yasnaya Polyana. E nos anos 80, depois de traduzir os Evangelhos e criticar a Igreja Ortodoxa em nome de um cristianismo menos eclesial e mais cristológico, enveredava por um populismo místico igualitário.

Algumas das críticas de Tolstoi à política e à religião dominante na Rússia czarista coincidem com as críticas dos socialistas revolucionários. O populismo cristão do escritor chega a merecer o quase-elogio de Lenine que, em artigos vários, se refere às “contradições” dessse “latifundiário obcecado por Cristo”, aristocrata austero e generoso, que, apesar de tudo, representava a fraqueza do povo e dos camponeses que “choravam e rezavam, moralizavam e sonhavam, escreviam petições e enviavam ‘súplicas’.”

Ainda vale a pena pensar a política?

O facto é que, historicamente, na Europa no mundo, e até em Portugal, as experiências doutrinárias foram mais frutíferas do que, à primeira vista, poderiam parecer.

E hoje, valerão a pena as revoluções intelectuais e culturais? Servirão para mudar o mundo e a política? Ou estaremos, como defendem muitos, num universo pós-moderno em que os “bites” e os “likes” tornaram inútil qualquer esforço pensante, qualquer modelo gramsciano de deslegitimação ou legitimação do poder, com vista à mudança ou à permanência no status quo?

E, no entanto, sob um aparente vazio de ideias, com as elites e o povo entretidos com os modernos sucedâneos dos romances libertinos ou do divertimento apolítico, num folclórico clima de “democracia, humanidade e planeta ameaçados”, age e funciona uma cultura de cancelamento que condiciona dirigentes políticos, agentes e mediadores culturais. A ela aderem, mais inconsciente do que conscientemente, os inocentes úteis que não querem deixar de ser modernos, moralmente superiores e especialmente sensíveis aos “novos direitos humanos e animais”, à igualdade entre os seres de todos os géneros e ao “respeito pelas minorias” – o que os torna maduros para a auto-culpabilização, para a contrição e para a denúncia.

A superioridade intelectual das Esquerdas, que remonta aos últimos anos do anterior Regime e que conheceu altos e baixos, está aí outra vez, sob estas festivas formas, usando e abusando da máxima de Tocqueville de que “uma ideia falsa, mas clara e precisa, terá sempre mais poder no mundo do que uma ideia verdadeira, mas complicada”.

Por tudo isto, é necessária uma “descolonização” mental do país, incluindo da própria Direita, em relação aos mitos que lhe vêm impondo, como o da superioridade ética e racional da Esquerda e dos seus mestres.

É todo um longo caminho de consciencialização e libertação. Aconteça o que acontecer no Domingo.