Em nove meses de prisão preventiva, José Sócrates escreveu sete cartas, deu três entrevistas e deixou sair outras tantas declarações. Falou sempre para se defender e para apontar o dedo às falhas do sistema judicial. Disse em todas as ocasiões que era um “preso político” e que o seu caso era, mais do que um caso de justiça, um caso político engendrado com o intuito de prejudicar o PS em ano de eleições.

Mas fê-lo muitas vezes em cima da agenda política do PS, sobrepondo-se mesmo a ela. A primeira carta que escreveu a partir do Estabelecimento Prisional de Évora, em novembro, apenas cinco dias depois de ter sido detido preventivamente, por exemplo, foi cair justamente nas vésperas do congresso do PS que elegeu António Costa como secretário-geral. E a sua recusa em sair com pulseira eletrónica, em junho, aconteceu na mesma altura em que se deu a convenção nacional do PS. Há poucas semanas, em agosto, a sua sétima e última carta a partir da prisão foi divulgada no mesmo dia em que o PS apresentou o seu estudo sobre o impacto financeiro do programa eleitoral.

Esta sexta-feira, a alteração da medida de coação que o fez sair de Évora e regressar a casa, em Lisboa, acontece a cinco dias do debate decisivo entre António Costa e Passos Coelho. O dia do debate, quarta-feira, era, de resto, o prazo limite para o juiz fazer a revisão da preventiva, sendo que esta foi a primeira vez que uma decisão sobre o processo não foi tomada em cima dos limites.

Foram ao todo sete cartas, três entrevistas e uma declaração. Recordamos aqui os momentos-chave e as frases mais marcantes:

Carta de 26 novembro de 2014 – Detido há nove dias, a primeira carta enviada da prisão foi em vésperas do congresso do PS, na FIL, que elegeu Costa como líder. O ex-primeiro-ministro diz que a detenção é um “abuso” e uma “infâmia” e afirma pela primeira vez que o caso, que é “contra si”, é um caso com “contornos políticos”.

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“A minha detenção para interrogatório foi um abuso e o espetáculo montado em torno dela uma infâmia; as imputações que me são dirigidas são absurdas, injustas e infundamentadas; a decisão de me colocar em prisão preventiva é injustificada e constitui uma humilhação gratuita.”

“Por isso, será em legítima defesa que irei, conforme for entendendo, desmentir as falsidades lançadas sobre mim e responsabilizar os que as engendraram.”

“Este é um caso da Justiça e é com a Justiça Democrática que será resolvido. (…) Este processo é comigo e só comigo. Qualquer envolvimento do Partido Socialista só me prejudicaria, prejudicaria o Partido e prejudicaria a Democracia.”

“Não tenho dúvidas que este caso tem também contornos políticos e sensibilizam-me as manifestações de solidariedade de tantos camaradas e amigos. Mas quero o que for político à margem deste debate. Este processo é comigo e só comigo. Qualquer envolvimento do Partido Socialista só me prejudicaria, prejudicaria o Partido e prejudicaria a Democracia.”

1 de dezembro de 2014 – A segunda carta é ditada por Sócrates ao seu advogado, que tem ordens expressas para só a divulgar depois de terminado o congresso do PS. A reunião tinha decorrido no sábado e no domingo na FIL, em Lisboa, e a carta foi divulgada à RTP na segunda-feira seguinte. Serve para desmentir dados que estavam a circular na comunicação social e para clarificar aspetos sobre o processo: Sócrates nega ter comprado a casa em Paris, mas confirma que habitou no apartamento do empresário e amigo Carlos Santos Silva.

“No primeiro ano, vivi num apartamento arrendado; depois, de setembro de 2012 a junho de 2013, vivi no apartamento que me foi emprestado pelo meu amigo Eng. Santos Silva, que o comprou para o restaurar, arrendar ou vender, que é a situação atual dele. Saí quando começaram as obras.”

“No princípio deste ano, depois de uns meses a viver com a família em hotéis, arrendei outro apartamento que mantenho atualmente como minha residência em Paris.”

“É certo que é difícil eu falar. Estou preso. Mas não lhes faço o favor de estar calado.”

4 de dezembro – Apenas três dias depois, nova carta. Agora para criticar a prisão preventiva e o segredo de justiça, que conta muitas vezes com a “cumplicidade” de alguns jornalistas.

“Prende-se para melhor se investigar. Prende-se para humilhar, para vergar. Prende-se para extorquir, sabe-se lá que informação. Prende-se para limitar a defesa: sim, porque esta pode ‘perturbar o inquérito’. Mas prende-se, principalmente, para despersonalizar. Não, já não és um cidadão face às instituições; és um ‘recluso’ que enfrenta as ‘autoridades’: a tua palavra já não vale o mesmo que a nossa. Mais que tudo — prende-se para calar”

“O ‘sistema’ vive da cobardia dos políticos, da cumplicidade de alguns jornalistas; do cinismo das faculdades e dos professores de Direito e do desprezo que as pessoas decentes têm por tudo isto”

“Quem nos guarda dos guardas?”

“Nem precisam de falar – os jornalistas (alguns) fazem o trabalho para eles. Toma lá informação, paga-me com elogios. Dizem-lhes o que é crime conhecerem, eles compensam-nos com encómios: magnífico juiz; prestigiado procurador; polícia dedicado e competente.”

7 de dezembro de 2014 – É a quarta carta, e a terceira no espaço de sete dias. Mas desta vez é dirigida ao ex-Presidente da República e fundador do PS, Mário Soares. O JN publica uma carta enviada a Soares a propósito do seu 90º aniversário, mas onde Sócrates aproveita para contar a sua versão dos factos.

“Naquela noite abracadabrante em Paris, quando soube da violência e terror que causaram aos meus filhos, à minha família, aos meus amigos (foi aí que René Char me veio ao espírito), pensei em todo o mal que me podiam fazer, todas as infâmias, humilhações, que pudessem estar – como estavam – preparadas contra mim. Depois, de coração limpo, avancei para lhes fazer frente. Para lhes fazer frente!”

2 de janeiro de 2015 – É a primeira vez que Sócrates dá uma espécie de entrevista, respondendo a questões colocadas pela TVI. Sócrates volta a dizer que não há factos para o Ministério Público o manter preso e reafirma a tese de que é um “preso político”.

“Dou esta entrevista em legítima defesa. Em legítima defesa contra a sistemática e criminosa violação do segredo de justiça; e contra a divulgação de “informações” manipuladas, falsas e difamatórias.”

“Esse poder obscuro é puro arbítrio e despotismo: impunidade absoluta, limitação infundada e desproporcionada de direitos fundamentais, segredo imposto apenas à defesa, proibição de entrevistas, impossibilidade de contraditório, condenação antes de qualquer julgamento, sanção antes de qualquer sentença.”

“Este processo é todo ele uma caixinha de presunções, em que as presunções assentam umas nas outras numa construção elaborada mas absolutamente delirante”.

“Já disse e mantenho: este processo, pela sua natureza, tem contornos políticos. E digo mais: este processo é, na sua essência, político. No sentido em que tem que ver com o poder, os seus limites e o seu exercício; o poder de deter para interrogar e o poder de prender preventivamente pessoas inocentes. Já para não falar nas consequências que este processo inevitavelmente terá na disputa política. Veremos quais. Como já disse, isto ainda agora começou”.

3 de fevereiro de 2015 – Depois da primeira entrevista, Sócrates volta a responder a questões, agora da SIC, reforçando as críticas às violações do segredo de justiça e falando sobre o suposto perigo de fuga que lhe é apontado.

“Nunca fugi de nenhuma dificuldade, sempre as enfrentei”.

“A minha detenção nada teve a ver com justiça, mas com espetáculo. Não se tratou de cumprir um qualquer objetivo jurídico legítimo, mas teatralizar politicamente uma ação judicial”

“O facto de ter tido dificuldades de liquidez num certo período da minha vida não significa que não tivesse um horizonte financeiro, pessoal e familiar, compatível com o meu nível de despesas.”

4 de março de 2015 – Um dia depois das jornadas parlamentares do PSD, no Porto, onde Passos Coelho fez alusões indiretas ao caso dizendo que “nunca” usou o cargo de primeiro-ministro “para enriquecer”, Sócrates escreve a sua quinta carta para responder à letra. Acusa Passos de estar próximo da “miséria moral” e reforça a ideia de “perseguição política”.

“Naturalmente não espero que o senhor primeiro-ministro, para quem manifestamente vale tudo, compreenda o valor da presunção da inocência num Estado de Direito, a extrema importância da separação de poderes, e muito menos que entenda que, no meu caso, não só ainda nada foi dado como provado como não foi sequer deduzida qualquer acusação”

“Ao atacar um adversário político que está na prisão a tentar defender-se de imputações injustas, o senhor primeiro-ministro não se limita a confirmar que não é um cidadão perfeito, antes revela o seu carácter e o quanto está próximo da miséria moral.”

“Este cobarde ataque pessoal em nada me surpreende. Afirmei desde o início que este processo tem contornos políticos e o uso deste processo por parte do senhor primeiro-ministro é a prova de que eu tinha razão. A perseguição política e a tentativa de condicionamento do resultado das próximas eleições ficou agora clara aos olhos dos portugueses.”

29 de abril de 2015 – É a sexta carta do ex-primeiro-ministro, desta vez dirigida ao socialista António Campos. Sócrates volta a classificar de “absurda” a acusação de que terá favorecido o Grupo Lena e diz-se vítima de uma caça ao homem.

“Infelizmente, chegamos a um tempo em que tanta indiferença perante estes abusos das autoridades parece confirmar que as garantias do Estado de Direito já não são vistas como a fonte legitimadora da justiça penal, mas como relíquias formais ultrapassadas”.

“Ao fim de cinco meses em prisão preventiva, o nosso estimável Ministério Público não teve ainda tempo para me apresentar os factos e muito menos as provas dos crimes que me imputa”.

“Exactamente, que factos criminosos devo refutar, que provas devo desmentir? Não sei, nem o Ministério Público sabe, até porque não cometi crime algum. A única diferença é que o Ministério Público não se importa com isso.”

“Isto diz-nos muito acerca da verdadeira origem desta investigação: ela não nasceu para perseguir um crime, mas para me perseguir pessoalmente, foi a caça ao homem.”

8 de junho de 2015 – Sócrates faz uma declaração à SIC a confirmar o que o seu advogado já tinha dito: ia rejeitar a medida de coação de pulseira eletrónia. O assunto caiu, no entanto, em cheio na convenção nacional do PS: na sexta-feira à noite, dia 4, o Ministério Público dá conta da alteração da medida de coação para a pulseira eletrónica, e o advogado João Araújo reage dizendo que Sócrates nunca aceitaria “andar com uma anilha”. No dia seguinte, dia 5, o PS estava reunido em peso no Coliseu dos Recreios para a convenção nacional do partido.

“Esse acto contou sempre com o meu protesto e o meu repúdio; nunca com o meu silêncio e muito menos com o meu assentimento. Agora, o Ministério Público propõe prisão domiciliária com vigilância electrónica, que continua a ser prisão, só que necessita do meu acordo. Nunca, em consciência, poderia dá-lo”

“Estas ‘meias-libertações’ não têm outro objectivo que não seja disfarçar o erro original e o sucessivo falhanço: depois de seis meses de prisão, nem factos, nem provas, nem acusação”

30 de junho de 2015 – Mais uma entrevista, desta vez ao DN e à TSF, onde Sócrates acusa o Ministério Público de ter agenda política e de querer “tão só” impedir a vitória do PS nas eleições. E onde deixa claro que não vai sair da cena política: “ainda agora começou”.

“Tenho a legítima suspeita que a verdadeira intenção da minha detenção abusiva e da minha prisão sem fundamento não foi perseguir crime nenhum mas tão só impedir o PS de ganhar as próximas eleições legislativas”.

“Não esperem de mim, em período pré-eleitoral, qualquer palavra que possa prejudicar a liderança do PS. Até porque me ficaria mal.”

“Como muitas vezes acontece, a simplicidade das fórmulas políticas pode confundir mais do que esclarecer. É muito frequente ser difícil distinguir o discurso da responsabilidade do da covardia e da rendição.”

19 de agosto de 2015 – A sétima e última carta. Surge precisamente na mesma altura em que o PS de António Costa apresenta um novo estudo sobre o impacto económico do programa eleitoral, com contas feitas. A argumentação de Sócrates volta a sobrepor-se à agenda do PS. E, mais uma vez, a linha é de que a sua prisão é “política”, mais concretamente para impedir a vitória do PS.

“À medida que o tempo passa cresce a legítima suspeita de que este processo tem como verdadeira motivação condicionar as próximas eleições e impedir a vitória do PS. Acontece que isso não compete à justiça, mas à política”

“A Justiça cometeu mesmo neste caso um erro monstruoso”.

“A única razão parece residir no facto desse apartamento ter sido meu. Já não se trata, apenas, do respeito que deve às pessoas e aos seus direitos, mas de perder o respeito que o Ministério deve a si próprio.”