Entre 6 de dezembro de 1998 e 6 de dezembro de 2015 vai muito mais do que uma mera contagem certa de 17 anos. Vai o princípio do movimento político mais significativo da História recente da América do Sul e também aquilo que pode ser um prenúncio do seu fim.

Na primeira data, Hugo Chávez vencia as suas primeiras eleições presidenciais na Venezuela, valendo-se dos 56,2% de votos para encabeçar uma declarada viragem à esquerda naquele país e que, várias maneiras, viria a ser replicada por quase toda a América Latina nos anos vindouros.

Chávez deu logo o tom para os tempos que se seguiriam aquando da sua tomada de posse, em fevereiro de 1999. Depois de o presidente do Congresso lhe ter perguntado se jurava “cumprir e fazer cumprir as leis da Constituição e da república”, o comandante pousou a mão de forma pesada naquele livro e retorquiu: “Prometo, perante Deus; prometo, perante a pátria; prometo, perante o meu povo, que sobre esta moribunda Constituição, farei cumprir e impulsionarei as transformações democráticas necessárias para que a república tenha uma carta magna adequada aos novos tempos. Prometo-o”.

Na segunda data, e já depois de 17 anos de domínio chavista (mesmo que, desde 2013, sem o seu mentor, entretanto vencido por um cancro) a esquerda populista sofreu um duro revés, desta vez a propósito das eleições parlamentares venezuelanas. Foi assim a 6 de dezembro de 2015, o passado domingo, quando a Mesa da Unidade Democrática (MUD), que congrega vários partidos da oposição de direita, conquistou mais de dois terços do Parlamento.

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Nicolas Maduro, o Presidente da Venezuela que foi escolhido a dedo por Chávez para lhe suceder, reconheceu a derrota logo na noite de 6 de dezembro, pediu a demissão dos seus ministros, mas ainda assim manteve a retórica que herdou do seu antecessor: “Na Venezuela não triunfou a oposição. Na Venezuela, no caso específico de hoje, triunfou uma contrarrevolução que está à porta; e nós já sabemos o que é uma contrarrevolução frente a um povo que está a fazer a sua própria história”.

Quatro dias depois, a 10 de dezembro e mais para Sul no continente, Mauricio Macri fez o seu discurso de tomada de posse como Presidente da Argentina, depois de ter conseguido vencer o candidato sucessor de Cristina Kirchner, Daniel Scioli. 51,3% foi o suficiente para Macri, do partido de centro-direita Proposta Republicana, pôr fim à liderança do casal esquerdista Kirchner — primeiro Nestor, Presidente desde 2003 e 2007, o ano da sua morte; e depois Cristina, que governou até quinta-feira.

Os 12 anos kirchnerismo, profundamente inspirado no peronismo, foram o período político mais duradouro da democracia argentina — e talvez por isso Macri tenha feito um discurso de rutura com esses dias quando tomou posse. “Querem um país unido na diversidade. É preciso tirar o confronto do meio do panorama político”, disse, voltando a insistir na ideia: “É necessário superar o tempo da da confrontação. Aprendamos a arte do consenso. Se nós argentinos nos unirmos, seremos imparáveis”.

A cerimónia ficou em grande parte marcada pela ausência de Cristina Kirchner — mas também por lá andou a Presidente do Brasil, Dilma Roussef, também ela uma das caras tanto da esquerda sul-americana como do seu (aparente) fraquejar. Numa série de tweets, a Presidenta escreveu que “a Argentina poderá contar com o Brasil como parceiro e aliado”, adiantando também que está “certa de que o Brasil e a Argentina seguirão se aproximando cada vez mais, em um espírito de amizade e cooperação”.

Uns quantos tweets atrás, com referências à Cimeira do Clima e à morte da atriz Marília Pêra pelo meio, Dilma reagiu ao mais recente — e um dos mais fortes — desafio à sua liderança: a aprovação da abertura de um processo de impeachment à sua liderança na sequência do caso de corrupção conhecido como Lava-Jato, levada avante pelo presidente da Câmara de Deputados, Eduardo da Cunha, e eleito pelos centristas do Partido do Movimento Democrático Brasileiro.

O impeachment foi entretanto suspenso pelo Supremo Tribunal Federal (STF), depois de uma queixa do Partido Comunista do Brasil, próximo de Dilma. O STF tem agora até dia 16 de dezembro para decidir que se o processo é ou não constitucional. Uma coisa é certa: a popularidade de Dilma está pelas ruas da amargura. Uma sondagem publicada no final de novembro apurou que 67% dos brasileiros classifica a sua governação como “ruim ou péssima”, contra apenas 10% que responderam “ótimo ou bom”.

Por isso, não é de estranhar que a maioria dos brasileiros queira a demissão de Dilma, pese embora o facto de ter sido eleito há pouco mais de um ano, quando derrotou Aécio Neves, a 26 de outubro de 2014. Segundo a Datafolha, 62% da população acredita que a Presidente brasileira deve apresentar a demissão, contra 34% que acha o contrário.

Os números também não sorriem a Nicolas Maduro — segundo um estudo de opinião do Pew Research Center lançado nas vésperas das eleições de 6 de dezembro, 85% dos inquiridos disse estar “insatisfeito” com o rumo do país. E até o legado de Chávez foi posto em causa, com 52% dos entrevistados a dizer que Maduro não devia seguir as políticas do comandante.

O que se passou para, passados 17 anos da primeira de muitas vitórias eleitorais da esquerda populista, defensora do socialismo de mercado, começasse a claudicar?

Castelo de cartas

Petróleo. Poucas palavras são tão importantes na Venezuela quanto esta — e o papel de destaque desta matéria-prima na economia daquele país ficou mais do que confirmado assim que o preço do barril de crude começou a cair em pique. Até junho de 2014, quando o preço se fixava nos 115 dólares, a economia venezuelana funcionava sem interrupções. A alta procura pelo ouro negro garantia a entrada de capital, sendo depois algum deste usado em obras públicas, sobretudo na área da habitação — uma das bandeiras do chavismo. Porém, com a queda do preço do barril de petróleo (está atualmente abaixo dos 40 dólares), a economia ressente-se de forma evidente — culminando na dificuldade de importação de bens de primeira necessidade. As filas nos supermercados, muitas vezes de prateleiras vazias, fazem hoje parte do quotidiano venezuelano.

Segundo o Fundo Monetário Internacional, “está previsto a Venezuela entrar numa recessão profunda em 2015 e em 2016 (-10% e -6% de crescimento, respetivamente), por causa da queda do preço do petróleo desde junho de 2014”. O mesmo organismo prevê que a inflação fique “bem acima dos 100%”.

Consideravelmente melhor, mas nem por isso bem, está a Argentina, que segundo o Banco Mundial acabou 2014 com a taxa de inflação a 28,2%. E o Brasil acaba de registar uma recessão de 4,5% no terceiro trimestre face ao período homólogo do ano passado — o que significa que foi a maior queda desde os anos 90.

Existe ainda um problema de falta de confiança entre eleitores e eleitorado da Argentina, Brasil e Venezuela: mais concretamente, a corrupção. Segundo o Índice de Perceção da Corrupção de 2014 da Transparency International, a corrupção é mais comum na Venezuela, que surge em 161º lugar entre 174 países — colocando o país de Maduro ao lado de Angola e pior do que, por exemplo, o Quénia ou a Síria. A Argentina surge em 101º e o Brasil em 69º — um fraco prémio de consolação, quando a Operação Lava-Jato assombra várias frentes do Partido dos Trabalhadores, de Dilma.

Só um irredutível não perde apoio popular

Fora da trindade Brasil-Argentina-Venezuela, também há casos de governos que figuram entre as várias esquerdas que subiram ao poder na América Latina com o virar do século XXI que hoje perdem popularidade.

No Equador, Rafael Correa, eleito em 2007, registou uma taxa de aprovação de 46% (contra 45% de inquiridos que lhe deram uma avaliação negativa). Embora o valor continue positivo, este está distante dos 79% registados em 2014.

Semelhante é o caso de Tabaré Vasquéz, líder do Uruguai. Eleito após Pepe Mujica, o frugal homem que presidiu àquele país entre 2010 e 2015, Vasquéz desceu de uma taxa de aprovação de 78% para 36% em apenas nove meses, segundo uma sondagem publicada em dezembro deste ano. Por enquanto, mantém-se à tona, uma vez que 33% desaprovam da sua liderança e outros 30% responderam de forma neutra.

Os números também não favorecem Ollanta Humala (Perú, 21% de aprovação), Michelle Bachelet (Chile, 20% de aprovação).

A exceção à regra parece ser Evo Morales, Presidente da Bolívia desde 2006. Depois de ter garantido apoio parlamentar para poder candidatar-se a um terceiro mandato (manobra bem conhecida na Venezuela de Chávez, para a qual foi necessária uma revisão constitucional), Morales arrecadou 61,4% dos votos nas eleições de 2014 — quase o triplo do segundo candidato mais votado. E em novembro, uma sondagem deu-lhe 66% de taxa de aprovação, contra uma minoria de 25% de pessoas que desaprovam a gestão do primeiro indígena a comandar os destinos da Bolívia.