Título: “A mais incerta das certezas – itinerário poético de Fernando Pessoa”
Autor: Pierre Hourcade
Editora: Tinta da China
Páginas: 487

A mais incerta das certezas – itinerário poético de Fernando Pessoa

Parece que, em certa tarde passada na Brasileira, Fernando Pessoa terá esboçado em linguagem de matemático, entre gráficos e quejandos, um “Interseccionismo explicado aos Inferiores”. Escrito por Pessoa, seria obra de alcance Universal, pois “inferiores”, em relação ao poeta, não apartaria ninguém. De tal gráfico, só restou uma menção numa carta a Armando Côrtes-Rodrigues, o que obriga quem quer compreender o interseccionismo a aventurar-se por escritos que não lhe estão destinados. É, portanto, com a reserva da incompreensão certa – que Fernando Pessoa não precaveu, deixando ir o gráfico para o lixo com as borras de café – que atrevemos umas tímidas palavras de caracterização. Interseccionismo, forma artística de cruzar planos ou sensações, aspecto que adquire o futurismo nado a partir do genoma Luso, cubismo traçado em letra, geometria lírica, ou tudo o que evoque a súbita mistura de planos diferentes, imagens inconciliáveis e lógicas contraditórias.

Faltará, a estas poucas linhas, a dimensão do génio, pois que assim também o livro de Pierre Hourcade – A mais incerta das certezas – poderia ser interpretado à maneira interseccionista.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Também neste livro se entretecem e deslindam vários planos, subordinados a uma metódica disciplina que tanto lembra a militar quanto a de Euclides. É separadamente um marco historiográfico, um precioso instrumento de análise e um retrato subtil da personalidade de Pessoa; mas conjuntamente é também uma preciosidade historiográfica, uma análise subtil e um retrato da obra que revela em cada heterónimo a marca de água do poeta de Orpheu.

É um tesouro histórico porque é a grande obra do primeiro tradutor francês de Pessoa, obra essa que a morte acabou por ele. Hourcade conheceu Pessoa, reconheceu-lhe o génio – acompanhado nisso pelos seus comparsas da Presença – antes de lho reconhecer a fama, e fez tudo por estudá-lo. Claro que, no entretanto, já muita coisa se passou. No tempo que separa a morte de Hourcade desta publicação do seu livro em Português, Cristo teve tempo de viver duas vezes, pelo que seria expectável que os estudos Pessoanos conseguissem decifrar mais uns quantos papelotes da arca sem fundo do poeta. Ora, o livro de Hourcade, pelas características próprias do seu método, tem em certas partes uns cabelos brancos a denunciar a idade. Hourcade procura perceber a evolução poética de Fernando Pessoa através da análise cronológica da sua obra. O escrutínio pormenorizado permitiria deslindar interesses moços a que o ânimo já madurado não ligaria, hábitos de meia-idade que a juventude não permitiria.

A mente do poeta

Claro está que, como muitos poemas não estão datados, Hourcade adivinha, teoriza, protesta, calcula, em assuntos que os anos seguintes vieram resolver com a força dos factos e de novos papéis saídos da arca. A forma de trabalhar de Hourcade, por centrar o estudo em cronologias, variações sazonais na mente do poeta e querelas editoriais, está sempre mais sujeita a desactualização. É isto que provoca um sentimento no leitor diferente daquele que se experimenta ao ler, por exemplo, a biografia que Gaspar Simões fez de Pessoa. Esta, apesar do criptograma psicanalítico que hoje ofende os bem-pensantes, tem uma vitalidade que advém de estudar as ideias, em si, e não a sua evolução. Gaspar Simões explica porque é que Pessoa pensa aquilo que escreve; Hourcade quer dizer quando é que Pessoa pensou o que escreveu. Daí que, nalguns pormenores, seja hoje uma obra mais importante para historiógrafos da bibliografia secundária Pessoana do que para estudiosos da obra de Pessoa. Sem explicação prévia, o livro de Hourcade pode enganar, avisar contra buracos já preenchidos e armadilhas já desarmadas.

O livro, no entanto, resiste pela qualidade da análise de Hourcade. O francês é um intérprete modesto, que não quer descobrir a Atlântida debaixo do Mar Salgado, nem a si próprio por detrás da autopsicografia. Não é fantasioso, está concentrado na letra dos poemas e naquilo que um observador sensato reconhece em cada um. O método acaba por tornar as análises um pouco fragmentadas, mas nunca excessivas. Hourcade dedica um capítulo a cada um dos principais heterónimos – Caeiro, Reis e Campos – parte a produção ortónima vincada pela linha do tempo, e dedica ainda um capítulo inicial aos primeiros passos e um final à Mensagem. Nos heterónimos, Hourcade enseja provar que as personalidades destas extensões pessoanas não são meras construções plásticas, unidimensionais. Também elas têm evoluções intelectuais, mudanças de interesses, e a produção poética demonstra-o. Ricardo Reis, por exemplo, descama a pele pagã, já muito mais frágil nos últimos anos. Em Campos, vai coleando a propensão auto-analítica própria de Pessoa “ele-mesmo”.

As teses vão sendo explicadas mediante o cotejo das datas dos poemas e uma leitura aproximada dos mais representativos de cada fase. Não pense o leitor inocente, todavia, que terá um compêndio de melhores momentos pessoanos engordado pela análise; este é um livro técnico, alfaia para estudiosos com a poesia na ponta da língua. O conhecimento da obra de Pessoa está sempre subentendido, de tal modo que algumas passagens podem perder o leitor que não tenha a guia pessoana na cabeça. Isto torna também difícil ajuizar o valor de algumas teses de Hourcade. Algumas opiniões estão ancoradas na datação que Hourcade atribui aos poemas, para dar apenas um exemplo, e a datação baseada nas opiniões. Isto é, Hourcade explica: Reis esteve primeiro mais ocupado com a apologética do Paganismo. Por isso, um poema não datado a exortar ao paganismo deve ser dos primórdios deste heterónimo. Como sei que a preocupação com o paganismo é uma característica dos primeiros poemas de Ricardo Reis? Pelas datas dos poemas, algumas delas calculadas por mim.

É certo que as hipóteses são sempre cuidadas, mas ainda assim hipóteses. E é neste particular, também, que algumas nugas académicas podem maçar o leitor; no entanto, honra lhe seja feita: o academismo de Hourcade, embora pudesse ser aligeirado, tem sempre justificação.

Missão (im)possível

É, talvez, essa a grande qualidade do livro. Sob a crosta especializada, há um vivo retrato de Pessoa neste livro. Percebemos aqui e ali um poeta algo indeciso ou inseguro com a sua produção, uma cabeça introspectiva, um Homem com certo desejo de glória e de choque mas com uma muito maior pulsão para a auscultação de si próprio. O padrão que Hourcade encontra na obra dos vários heterónimos passa pela forma como vão progressivamente abandonando teses ou algumas características mais vincadas para se aproximarem daquelas que eram as maiores inquietações de Fernando Pessoa: o mistério de si próprio, a falsa promessa de um mundo que não dá nada daquilo que mostra e uma certa reverência em relação à morte e à posição do sujeito no infinito. Poderíamos tomar os heterónimos quase como um registo de rotas possíveis para as perguntas fundamentais de Pessoa, rotas essas que vão chegando a becos de que não se sai. Nem o apagamento do desejo, como em Ricardo Reis, é possível, nem o exterior o resolve, como em Campos, nem se chega a uma harmonia voluntariamente, como em Caeiro. Todos eles se aproximam então do Pessoa ortónimo, que é um Pessoa interrogativo, quase pessimista, que aponta as falhas na compreensão do mundo e não as soluções.

Hourcade propõe-se a uma tarefa difícil e muitas vezes enganadora: a tarefa de, a partir de ideias, procurar personalidades. Este, habitualmente, é um método perigoso e espúrio, de certa forma até sobranceiro, porque implica um assumpção de que quem estuda foi capaz de distinguir aquilo que o estudado não foi: aquilo que é a sua convicção e aquilo que é o seu feitio. Nem a personalidade costuma explicar as ideias – saber que Marx era antipático nada diz sobre a validade da luta de classes – nem as ideias explicam a personalidade – não é por ser um impoluto democrata que o vizinho é mais ou menos simpático. Interessante, porém, pode ser verificar que a expressão poética tanto mistura ideia como personalidade. O trabalho de Hourcade passa por distingui-las e verificar, depois, que quando as ideias caem, se mantém a pergunta de um Homem que tem de viver mas não sabe como.

É um trabalho importante, claro na exposição, e que muito nos poderá ajudar, a nós inferiores, a perceber tudo aquilo que Pessoa não deixou em didascálias do seu drama em gente.

Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia. Colabora no site Velho Critério.