Título: “Manuel Mafra. Ceramista da Casa Real Portuguesa”
Autor: Cristina Ramos e Horta
Editora: Caleidoscópio
Páginas: 200, ilustradas
Preço: 39,75€

Capa MM

A história da nobre indústria cerâmica das Caldas da Rainha está longe de cingir-se à obra de Rafael Bordallo Pinheiro, sem dúvida o mais carismático e “mediático” dos seus criadores, e hoje praticamente renascido através duma campanha eficaz de relançamento de alguma da sua produção. Acabado de regressar de três anos no Rio de Janeiro, o genial caricaturista interessou-se pelas Caldas da Rainha e pelo potencial artístico e industrial da cerâmica decorativa ali produzida porque, de alguma maneira, um gosto e um ambiente comercial se apresentavam já confortavelmente instalados e consagrados, convidando o seu empreendedorismo e bicho-carpinteiro criativo a aventurarem-se na “faiança de fantasia”, depois de décadas de vida dedicada ao exigente trabalho em publicações semanais de humor, sarcasmo e indomável traquinice política (que, aliás, nunca largou). Mas sequer foi tarefa fácil, tendo a sua empresa vivido quase sempre no fio da navalha, tanto mais que Rafael, mais artista do que gestor, não deixou de lado um certo experimentalismo, de que é exemplo maior a grande Jarra Beethoven, da qual se dizia querer desafiar a gravidade.

Mais do que o centro vidreiro da Marinha Grande, ali a dois passos, as Caldas da Rainha como grande fábrica barrista têm sido alvo de importantes trabalhos historiográficos, muito por iniciativa e mérito do Museu da Cerâmica local, e das exposições que promoveu em anos recentes, aos quais se juntaram, entre outros, os estudos de Rafael Salinas Calado (1937-2006), Paulo Henriques e Alexandre Nobre Pais, do Museu Nacional do Azulejo.

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Marca identitária das Caldas da Rainha, a cerâmica teve ali um passado glorioso cuja produção foi várias vezes premiada em exposições internacionais, mas a passagem duma produção oficinal a industrial precisa ainda de ser melhor esclarecida, do mesmo modo que a acção de alguns dos seus protagonistas, como Maria dos Cacos (1820-53), Costa Motta Sobrinho (1877-1956; autor duma bela Jarra Nó em azul cobalto, de 1912) e outros, mas também a louça vidrada dos ditos malegueiros no século XVI ou o vidrado verde como exclusivo local dos séculos XVII-XVIII.

O hospital termal consumia uma parte assinalável dessa produção, para armazenamento clínico e serviço de louça comum, e faziam-se também «vasilhas de ostentação» para ornamento doméstico, que a frequência da família real e da aristocracia cortesã nas termas caldenses ajudou a disseminar notoriamente. D. João V foi dos primeiros a valer-se daqueles bálsamos líquidos, de 1742 até à sua morte, oito anos depois, e a vontade e a presença do Rei Magnânimo induziram a requalificação urbanística e patrimonial da vila, inclusive com a reedificação do próprio hospital termal, riscada por Manuel da Maia e Eugénio dos Santos.

Primeiras obras

O avanço da roda de oleiro para os primeiros moldes ocorreu nas oficinas de Maria dos Cacos, que produziam cerâmica rústica para feiras em todo o país, contacto este que a levaria à adopção de motivos habitualmente tidos como de Barcelos, outro grande centro oleiro. Oleiro-formista e moldador tornam-se figuras centrais nas pequenas oficinas cerâmicas, e é por morte ou doença da patrona, em 1853, que se destacará o operário Manuel Cipriano Gomes Mafra, que lhe toma por trespasse a indústria situada num tal Beço da Onça. Em 1860, Manuel Mafra abriria uma nova e certamente mais ampla oficina, na destacada praça D. Maria Pia (que a república poucos dias após o 5 de Outubro, num gesto de soberba e vaidade, fez baptizar com o seu próprio nome…), onde tinham sede os paços do concelho.

7 fotos

A linha férrea beneficiaria muito Caldas da Rainha como destino sazonal, a partir de 1887. A crescente reputação internacional das suas águas sulfúreas, propagandeada por clientes ilustres e na exposição universal de Paris de 1878, atraiu à vila muitos estrangeiros, desde espanhóis da raia até abastados “brasileiros”, que larga influência tiveram na difusão da faiança local naquele país. Fazer compras nas lojas de cerâmica duma rua contígua ao hospital termal e visitar as oficinas propriamente ditas eram programas habituais dos termalistas.

D. Fernando Saxe-Coburgo Gotha (1816-85), conhecido como “o rei-artista” — foi retratado com um prato cerâmico nas mãos —, frequentou a estância termal, adquirindo a Manuel Mafra considerável soma de peças para os palácios reais da Pena (Sintra) e das Necessidades (Lisboa), mas também para o pequeno chalé da condessa de Elba, mas sobretudo exercendo considerável influência estética sobre o ceramista nascido no recanto saloio de Sobreiro de Mafra, ajudando-o a enquadrar-se muito para lá dum panorama regional e duma arte estritamente utilitária ou popular. O rei simplesmente apadrinhou-o: mostrou-lhe a sua quase enciclopédica colecção de cerâmica, forneceu-lhe informação sobre modelos neopalissistas e majólicas italianas, e globalmente caucionou um gosto romântico que daria a Mafra clientela ilustrada e ilustre, como Wenceslau Cifka (coleccionador, consultor artístico do monarca, ceramista como ele e fotógrafo de mérito) e o banqueiro e empresário Henrique Burnay (1838-1909).

Cristina Horta descobriu, porém, num diário de viagem régia que a atenção de D. Fernando ao “virtuoso ceramista” (sic) começara em 1852, quando ele ainda trabalhava para D. Maria dos Cacos. O rei também pôs a mão na massa na oficina de Mafra, decorando, pintando e assinando pratos actualmente incorporados nas colecções do Palácio Nacional da Ajuda, enquanto o ceramista fez caixas charuteiras com a efígie do monarca.

Dezoito anos bastaram, desde então, para que Manuel Mafra se tornasse, em 1870, fornecedor da Casa Real. A excepcional brevidade do próprio processo, desde a solicitação em Julho até o alvará régio assinado em Novembro, é, segundo a historiadora, “uma prova inequívoca do prestígio que o ceramista tinha junto da corte, bem como a proximidade com D. Fernando e D. Luiz e o apoio que deles recebia”. Mais do que o título honorífico, a preferência da Coroa era uma enorme vantagem comercial, talvez até mais influente do que as medalhas nos grandes certames internacionais em voga, ou as suas representações em feiras industriais portuguesas, que ele praticamente descorou.

Mafra tornara-se um industrial rico mas também profissionalmente esclarecido, sendo o primeiro nas Caldas a publicitar a sua fábrica cerâmica na imprensa, metade dos seus quinze operários sabiam ler e escrever, coisa rara no sector, e recebiam salários mais elevados, de acordo com um inquérito industrial de 1881. Um dos seus principais colaboradores, o hábil modelador Joaquim Cartaxo, formara-se na fábrica Lamego, em Lisboa, e viria a trabalhar depois com Rafael e Manuel Gustavo Bordallo Pinheiro, na Fábrica das Faianças. Mas seria caso isolado, num panorama em que a ausência dum ensino de desenho artístico consistente e actualizado travava o desenvolvimento industrial. Em Sacavém, a fábrica de J. S. Howorth produzia em 1881 faiança fina com técnicas modernas, importadas da Inglaterra.

Tempos difíceis

A empresa de Mafra começava a dar sinais de declínio, em parte motivado pela idade do patrono, pela morte do seu mecenas D. Fernando em 1885, pela ultrapassada — ou sobretudo contestada — estética romântica e estrangeirada, e mais ainda, pela carismática concorrência de Bordallo, robustecida pelo modelo accionista da sua Fábrica de Faianças, em contraponto ao padrão estritamente familiar da empresa de Manuel Mafra. Cristina Horta também dá como motivo o facto de o seu filho e sucessor, Eduardo, ter mais vocação de político do que de ceramista e, segundo voz corrente na terra, “mais jeito para passear do que para trabalhar”.

Vinte anos depois do privilégio régio, em Setembro de 1890 Manuel Cipriano Gomes Mafra decidiu leiloar utensílios, moldes em gesso e toda a louça em depósito, e apesar de umas débeis reincidências ao longo de sete anos, já sem operariado de valor, será doravante Bordallo Pinheiro — um declarado republicanista! — a recolher os aplausos e as benfeitorias régias, como sucedeu em 1890 e 1894. Nas notícias da chegada de D. Carlos e D. Amélia à vila nesse último ano, e à forma festiva como as oficinas cerâmicas tinham por hábito acolher suas majestades, a de Mafra já não é sequer mencionada. A venda a desbarato aconteceria três anos depois, em 1897. Para cúmulo, no seu obituário d’O Século (1905) o ceramista — de que não se conhece uma única fotografia — será recordado sobretudo como pai dum político e autarca caldense.

Uma peça sua, um jarro coberto com tampa, em estilo neopalissista, chegaria ao PowerHouse Museum, em Sidney, Austrália. Outra, um prato musgado com cena dramática entre predadores reptéis (um tema da sua especial predilecção), foi doada em 1965 ao Victoria and Albert Museum, de Londres, por um coleccionador privado — e até uma tabaqueira de Mafra pertenceu ao naturalista Charles Darwin… Outro prato musgado, com borboletas vidradas muito coloridas, está no Museum of Art de New Orleans, indicado como tendo pertencido à colecção Hayard Duchi e Marshall Katz. Joe Berardo também comprou obras de Manuel Mafra, como a Folha de Couve com Caracol reproduzida na p. 77.

Expondo na Exposição de Londres em 1871, várias peças suas — entre as quais um prato de sobremesa, uma caixa tabaqueira, um jarrão e uma cobra enroscada (p. 6) — foram adquiridas pelo comissariado régio inglês para o South Kensigton Museum (actualmente Victoria and Albert Museum). Em Viena de Áustria, dois anos depois, seriam premiadas com uma medalha de mérito (a maior das centenas de recompensas atribuídas a expositores portugueses) ou compradas por um coleccionador suíço, Gustave Revilliod (1817-90), que as doaria ao Musée Ariana de Genebra, especializado em vidro e cerâmica.

Em 1876 levou até à exposição universal de Filadélfia as suas surpreendentes produções zoomórficas — como jarros totalmente musgados com lagartos, cobras, grifos, até golfinhos por asas (v. pp. 8, 11, 99) —, e embora Cristina Horta não tenha conseguido saber se o Pennsylvania Museum and School of Industrial Art (hoje Philadelphia Museum of Art) adquiriu então obras do ceramista português, a proliferação delas pelos Estados Unidos da América permitiu-lhe concluir que “muitos coleccionadores e particulares as tivessem comprado, até pelo benefício do seu baixo preço”. Em 1878, Manuel Mafra recebeu uma medalha de prata na exposição universal de Paris, e no ano seguinte foi ao Rio de Janeiro mostrar as suas produções num mercado “dos mais apetecidos para os nossos fabricantes”.

Sucessores

Mas o fim da sua carreira já estava próximo: depois de ter ajudado ao revigoramento da cerâmica europeia, o estilo neopallisista declinava, como advertira o relatório da exposição vienense de 1873, e a conversão estética de Mafra não foi senão muito incipiente. O seu Prato Lagosta de 1888 (p. 151) podia servir-se como remate final.

Quando Bordallo Pinheiro abriu o seu negócio cerâmico em Caldas da Rainha, em 1884, a cerâmica arte nova já começara a impor-se como moda ascendente no mercado internacional, mas Rafael ainda foi buscar a modelos de Manuel Mafra inspiração para alguns dos seus primeiros trabalhos. Vejam-se, entre alguns outros, o macaco em castiçal de musgado deste (p. 72) e o agora recuperado macaco subindo por uma corda daquele, os pratos com peixes sob rede, de um e de outro (pp. 174-75), ou a alcofa com lagosta e verduras de Rafael, na p. 163. Cristina Ramos e Horta subintitula precisamente de “afinidades, rupturas e recriações” o capítulo dedicado aos dois ceramistas caldenses, ambos falecidos em 1905.

O livro da antiga directora do Museu da Cerâmica das Caldas da Rainha (2000-9) reaproveita muito bem a sua tese de doutoramento (2014) dedicada a Manuel Mafra, um artista de grande mérito que ela realmente salvou da obscuridade. E tendo tudo para se tornar uma referência incontornável na história da cerâmica portuguesa, Manuel Mafra. Ceramista da Casa Real Portuguesa merece o nosso mais vivo apreço e agradecimento.