Sexta- feira à noite em Lisboa. O pequeno auditório do Centro Cultural de Belém encheu-se para ouvir o poeta, ensaísta e tradutor sírio, Adonis, um dos convidados do Lisbon & Estoril Film Festival deste ano. O mote era apresentação dos poemas que o também poeta Nuno Júdice traduziu e coligiu na antologia Arco-Iris do Instante (Dom Quixote), mas falou-se mais de poder e de como o poder político aliado ao poder religioso tem destruído povos, países, culturas. No final, o poeta sírio deixou no ar uma afirmação que ficou a reverberar na sala: “Neste momento há quatro países árabes a serem totalmente destruídos sob o total silêncio dos intelectuais europeus”.

Muito do público presente era francês. Recorde-se que o poeta fixou residência em França desde os anos 80 e, com todas as problemáticas relativas ao mundo árabe, especialmente desde o início da guerra na Síria, tornou-se uma voz conhecida e reconhecida. Por outro lado, em Portugal havia, até há pouco tempo, apenas uma tradução da poesia de Adonis, feita pela Relógio D’Água, que não consta estar esgotada. Em boa hora, a Porto Editora e a D. Quixote investiram também na publicação da poesia e dos pensamentos de Ali Ahmad Said Esber, o verdadeiro nome do poeta que tem feito parte das listas de nobelizáveis.

Paulo Branco Houria Abdelouahed, Adónis, Nuno Júdice e Jorge Silva Melo na sexta-feira à noite no CCB

Paulo Branco, Houria Abdelouahed, Adonis, Nuno Júdice e Jorge Silva Melo na sexta-feira à noite no CCB

A sessão começou com a leitura de poemas da nova antologia na voz do ator e encenador Jorge Silva Melo, seguida de uma intervenção da franco-marroquina, Houria Abdelouahed, que é responsável pela tradução para francês da poesia que Adonis escreve sempre em árabe. Houria abordou, precisamente, a importância e a força das línguas mediterrânicas do mundo pré-árabe e cuja sonoridade e beleza o poeta tenta recuperar na sua poesia. A tradutora e psicanalista lembrou ainda que a violência do Islão veio assassinar o projeto espiritual não só das antigas línguas do deserto mas também da própria língua árabe.

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Espelho do Século XX
Caixão revestido com rosto de menino
Livro escrito nas entranhas de um corvo
Fera que avança levando uma flor
Rocha que respira nos pulmões de um louco
assim é o século XX” (Adónis)

Adonis, um poeta para o século XXI

Na poesia de Adónis, que conta já 86 anos, encontramos, senão a salvação da poesia, pelo menos a força de uma voz intemporal, onde um virtuoso trabalho com as palavras se alia a uma visão crítica do mundo.

Arco-Íris do Instante, antologia de poemas de Adónis, traduzidos do francês por Nuno Júdice. Ed. D. Quixtote. 14.90 euros

Arco-Íris do Instante, antologia de poemas de Adónis, traduzidos do francês por Nuno Júdice. Ed. D. Quixtote. 14.90 euros

Mas estava claramente menos interessado em discorrer sobre a sua poesia, o seu processo de escrita ou a sua biografia por onde as perguntas que lhe fez Nuno Júdice tentaram entrar. Adonis avançou pela realidade a dentro e falou de um dos temas que o acompanha: a destruição levada a cabo pelas três grandes religiões monoteístas, em especial o Islamismo e o Cristianismo. Religiões que quando institucionalizadas “deixaram de ser uma questão de fé individual” mas se tornaram um “instrumento do poderes políticos”.

O poeta lembrou ainda que sob a égide do cristianismo, os países da América, entre os quais os EUA, se erigiram sobre a exterminação de povos inteiros, e que a Europa cristã sempre se calou, e continua a calar, ante a violência do Islão.

“E reconheço: Nova Iorque, tens no meu país a colunata e a cama, a cadeira e a cabeça. E tudo o que há para vender: o dia e a noite, a pedra de Meca e a água do Tigre. E proclamo: apesar disso, resfolegas — bates-te na Palestina, em Hanói, no Norte como no Sul, no Oriente como no Ocidente, contra pessoas que não têm outra história a não ser o fogo.”

Recorde-se que, em 1955, o poeta passaria um ano preso por pertencer ao Partido Nacionalista Sírio. Depois deste episódio partirá para o Líbano onde criará a revista Shi’r (Poesia) no início dos anos 60.

Oriundo de uma família pobre, Adonis aprendeu a ler com o Corão e os livros de poesia do pai. Só foi para a escola aos 13 anos mas, aí, descobriu, a cultura helénica e latina que haviam de marcar toda a sua vida (até a escolha do pseudónimo) e a sua poesia onde confluem, sem cessar, a cultura ocidental e a cultura árabe, sobretudo a pré-islâmica, cujos ecos ele tenta recuperar: através, por exemplo, das suas traduções para árabe de poetas ocidentais como Ovídio e as suas traduções de poetas árabes para francês, como Abu Nuwas (poeta persa do século VIII) ou Al-Ma’arri (poeta sírio do século XI).

Adonis aproveitou o exemplo destes dois poetas para falar um pouco sobre a forma como o islão é uma língua que destrói a poesia e os seus poetas pois não aceita a existência de subjetividade, de um Eu emancipado das correias da tradição e da religião.

“…e quando me resignei na ilha das pálpebras
em ser o hóspede das conchas e dos rastros
vi que o destino é um frasco
com águas e fagulhas
pronto a fazer do homem
mito ou fogo lendário,

eu ia carregado sobre os ramos
num bosque lácteo enfeitiçado
seu dia, consagrado à loucura, era
minha cidade, e a noite recinto íntimo.”

Inevitável era a pergunta que sempre é feita aos poetas exilados: porque é que insiste em escrever em árabe? “Porque a língua tem uma só mãe. A língua é sempre a primeira, aquela que bem da memória, do corpo, da fome. Além disso o árabe é uma língua ciumenta. Se eu escrevo noutra língua ela fica com ciúmes e revolta-se”, explicou rindo.

Escrevendo em árabe, procurando resgatar misticismo arcaico das línguas do deserto, e da religião Sufi, Adonis não deixou de introduzir na sua poesia inovações radicais do Ocidente como o Surrealismo, onde assumidamente vai beber, mas também a poetas americanos como Walt Whitman, belgas como Henri Michaux ou franceses como Baudelaire. Isto valeu-lhe o epíteto de “modernizador da poesia árabe”, nomeadamente pela introdução de inovações formais como o verso livre e o poema em prosa.

Portugueses e franceses encheram o pequeno auditório do CCB para a conversa com o poeta sírio

Portugueses e franceses encheram o pequeno auditório do CCB para a conversa com o poeta sírio

Tão radical como é a sua posição contra as religiões é a sua crítica à Europa e aos intelectuais europeus que apelidou de “funcionários do poder”, por terem esquecido as conquistas humanistas, culturais e civilizacionais e se posicionarem sempre ao lado do poder. E dirigindo-se à sala perguntou “como é que é possível que a Europa onde se escreveu o D. Quixote seja a mesma que hoje aceita ser um satélite dos Estados Unidos?”.

Se algo marcou esta sessão no CCB com Adonis foi a questão de a poesia não poder desligar-se do contexto em que é criada, em especial, e, claro, da língua — sessão onde apenas faltou uma tradução para português.