Desde o grande passo em falso que foi “Green Hornet” em 2011, uma adaptação caríssima e falhada do “comic” com o mesmo nome, que o francês Michel Gondry tomou alguma distância em relação a Hollywood, embora tenha estado longe de ter tirado férias. Fez telediscos para Björk ou para os Chemical Brothers, e um trio de longas-metragens completamente diferentes umas das outras: “A Malta e Eu” (2012), rodado num autocarro em Nova Iorque com adolescentes não-actores profissionais e em estilo “alternativo-improvisado”; o surpreendente documentário de animação tradicional “’É Feliz o Homem que é Alto?” (2013), onde se desenha a dialogar com Noam Chomsky; e “A Espuma dos Dias” (2013), adaptação excessivamente trabalhada e forçadamente “surrealista” do livro de Boris Vian, que parecia mais um filme de Jean-Pierre Jeunet do que de Michel Gondry.

[Veja o “trailer” de “Micróbio e Gasolina”]

O seu último filme, “Micróbio e Gasolina”, rodado em França em 2015 e que chega a Portugal absurdamente atrasado, é o melhor que Gondry fez desde “Por Favor Rebobine” (2008), mesmo que mais calmo em termos de invenção visual e elaboração fantasiosa, duas qualidades que nos habituámos a associar ao autor de “Natureza Humana” e “O Despertar da Mente”. É um filme de adolescentes anti-filme de adolescentes americano, no sentido de que não tem drogas, sexo, bebedeiras, uma história primária e o tipo de comédia alarve que caracteriza estes. Os azimutes de “Micróbio e Gasolina” são outros, a começar pelo “filme de amigos e colegas de liceu” tradicional que se fazia entre os anos 50 e 80, e a acabar nas bandas desenhadas franco-belgas clássicas da idade de ouro do género. Michel Gondry assinou uma fita que podia ter saído direitinha das páginas do “Tintin” ou do “Spirou”. E só lhe fica bem.

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[Veja uma cena do filme]

Micróbio e Gasolina moram em Versalhes, estão na faixa dos 13-14 anos, andam no mesmo liceu e são ambos “outsiders”. Micróbio (Ange Dargent) chama-se Daniel mas ganhou a alcunha por ser pequeno demais para a sua idade, e costuma ser confundido com uma rapariga por causa do corte de cabelo. Gasolina (Théophile Baquet) chama-se Théophile mas o “Gasolina” pegou porque anda sempre a mexer em motores e “gadgets”. Vêm de meios sociais diferentes (família afluente e liberal para Daniel – a mãe é interpretada por Audrey Tautou –, família proletária e feia e brutinha para Théo), mas isso não os impede de ficarem amigos inseparáveis, com Micróbio a receber algumas lições de vida do mais solene Gasolina (sobre a bebida: “O álcool é a morte da dignidade”; sobre o amor: “É um nobre e belo tipo de dor”). Não ignoram o sexo, mas não têm por ele a obsessão aluada dos seus congéneres dos “teen movies” americanos.

[Veja a entrevista com Michel Gondry]

As aulas estão a acabar e o Verão está a chegar, e os dois amigos têm uma ideia brilhante. Construir um carro artesanal com um motor de corta-relvas e um esqueleto de uma cama, disfarçá-lo com a tosca estrutura de uma casa improvisada e partir estrada fora (sem dizer nada aos pais, pois então). A aventura vai conduzi-los a encontros entre o insólito e o mirabolante com polícias de estrada, um dentista demasiadamente zeloso, mafiosos chineses e uma equipa de râguebi, sem falar no concurso de desenho do qual depende o regresso da dupla a Versalhes, depois do triste – embora espectacular – fim da casa sobre rodas. Não fossem os Smartphones e mais dois ou três elementos contemporâneos, e “Micróbio e Gasolina” seria um filme feito na década de 70 que foi metido numa máquina do tempo e apareceu nos nossos dias.

[Veja a antestreia do filme em Paris]

Os fantasmas de Jacques Tati, do Truffaut de “A Idade da Inocência” e do Raymond Queneau de “Zazie no Metro”, e o espírito de bandas desenhadas como “A Turma”, de Roba, passam alegremente por este inspiradíssimo “Micróbio e Gasolina”, interpretado com uma naturalidade abençoada e desarmante pelos estupendos Ange Dargent e Théophile Baquier, e realizado por Michel Gondry sem trucagens computacionais mas com uma rara sensibilidade para a forma como os adolescentes sentem, agem, pensam e se relacionam, e fazem disparates. A que o realizador junta uma alegria contagiosamente irresponsável e uma energia em moto contínuo apenas possível em miúdos da idade de Micróbio e Gasolina, tudo ao som da banda sonora ligeirinha de Jean-Claude Vannier. Os filmes de amigos adolescentes ainda podem ser o que eram, e isso é muito bom.