“Para os cânones dos museus portugueses esta exposição é absolutamente inédita”, disse José de Guimarães, em conversa com a imprensa, na segunda-feira à tarde. “A Gulbenkian, por exemplo, está a dar os primeiros passos neste sentido, já tem ido buscar peças de arte contemporânea para um diálogo com a coleção antiga. Mas algo tão profundo, como aqui, acho que nunca tinha sido feito. É uma novidade em Portugal, mas em Paris ou Veneza já se tem visto.”

Conhecido do grande público pelos néons na estação de metro de Carnide e pela enorme estátua colorida na rotunda de Braço de Prata, em Lisboa, o artista visual contextualizava, assim, a exposição “Um Museu do Outro Mundo”, que abre nesta sexta-feira no Museu do Oriente, em Alcântara. É o pontapé de saída para as comemorações do 30º aniversário da Fundação Oriente e do 10º aniversário do museu.

A exposição compreende 150 peças da coleção Kwok On, pertencente ao museu, a que acrescem 60 peças da autoria de José de Guimarães, por sua vez casadas com artefactos da coleção chinesa do próprio artista. “Um encontro entre arte contemporânea e obras com centenas ou milhares de anos. O conceito é o de arte sem tempo”, resumiu.

Um dos inéditos, criados de propósito para a ocasião, chama-se “Guardiões de Túmulos” e consiste numa instalação de duas estatuetas da dinastia Tang sobre uma slot machine.

“Esta slot machine é autêntica, chegou-me às mãos e depois esventrei-a toda, mas nunca pensei que algum dia a fosse expor num museu. É uma obra ambígua. A slot machine é como um túmulo, é símbolo da ganância ou da ambição, e acaba por ser vencida e está morta. Por isso, vemos dois guardiões de templos, ou de túmulos, por cima”, descreveu José de Guimarães, durante uma visita guiada para jornalistas.

Igualmente chamativa, a peça “Garde-robe” baseia-se num objeto que José de Guimarães muitas vezes utiliza: a caixa-relicário. Ao mesmo tempo, é uma peça que evoca as cores fortes e o ambiente intimista de um bordel. “É tipicamente, na sua dimensão, um quarto à oriental, onde tudo se acumula dentro”, descreveu o artista. Em frente, uma escultura que representa um episódio do texto sagrado do hinduísmo, com a deusa Kali por cima da divindade Shiva – peça em argila, criada para ser afundada no rio Ganges, em rituais religiosos.

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Apreciará o público esta mistura de obras do museu, obras de José de Guimarães e peças de arte chinesa? “Não”, respondeu de imediato, com alguma ironia. “Isto é de tal maneira surpreendente que dificilmente a massa crítica acompanha, mas acho que é tudo uma questão de habituação. Eu próprio fico às vezes de boca aberta com obras de outros artistas e depois à segunda ou terceira, aquilo começa a ser perceptível. É uma questão de habituação”, sublinhou.

José de Guimarães trabalha “à procura da transculturalidade”, dizem os críticos

Fúnebre e divino

A mostra resulta de um convite do Museu do Oriente e foi pensada entre o artista, o curador Nuno Faria (diretor artístico do Centro Internacional das Artes José de Guimarães, na cidade-berço),  a museóloga Sofia Campos Lopes (curadora da coleção Kwok On) e o arquiteto Pedro Campos Costa (responsável pelo espaço expositivo). Está distribuída por três áreas distintas e pode considerar-se uma viagem fantástica ao profano e ao divino. É como se as peças ocupassem uma “cidade com ruas e praças”, no dizer de José de Guimarães. Ou “uma espécie de urbe algures entre o bairro tradicional, de arquitetura mais precária, e a construção tumular”, acrescentou Nuno Faria.

O arquitecto Pedro Campos Costa completou:

“Há aqui dois mundos, duas encenações que queremos provocar. Uma sala mais terrena, mais labiríntica, mais carnal, com uma arquitetura mais urbana. E outra sala em que se dá uma explosão celestial ou sem limites, que quer provocar a sensação de desfragmentação do espaço. A meio da duas, uma área dourada que faz a transferência entre os dois mundos e que é a sala da luxúria.”

A coleção Kwok On, disse Sofia Campos Lopes, chegou à Fundação Oriente em 1999, através do sinólogo francês Jacques Pimpaneau, que a iniciou em 1971, quando dava aulas em Hong Kong e travou conhecimento com o chinês Kwok On – que veio a doar-lhe cerca de 600 objetos e documentos. Hoje, são 13 mil artefactos, da Turquia à China, passando pelo Irão, Índia, Indonésia, Camboja, e entre eles contam-se  trajes e máscaras de teatro, estatuetas e altares domésticos, com especial incidência no teatro Noh e Kabuki do Japão, na ópera chinesa ou na dança Kathakali indiana.

“É uma coleção etnográfica, com uma leitura mais antropológica, e centra-se nas artes performativas asiáticas, associadas a contextos religiosos, daí que tenhamos objetos rituais e muitos documentos sobre divindades asiáticas. De forma resumida, diria que as nossas artes performativas estão mais associadas a entretenimento, enquanto estas eram praticadas com o objetivo de criarem prosperidade, no momento da morte de um ente querido ou numa festividade religiosa”, explicou a museóloga.

“Parece que temos receio da perturbação”

Foi há cerca de quatro décadas que José de Guimarães começou a criar três coleções próprias: de arte africana (hoje com cerca de cinco mil peças), de arte pré-colombiana (300) e de arte chinesa (mil, sobretudo jades e bronzes).

“Comprei as obras de arte chinesa no Japão, em Macau, na China e também na Europa”, contou. “Não propriamente em leilões, porque aí os preços alcançam valores incomportáveis. Encontrei-as em antiquários ou lojas. Em Macau não se chamava antiquários, eram os tin-tins, que quase já não existem. As peças africanas são peças de representação: representam o passado ou elementos da tribo, não são decorativas. As chinesas, mesmo as arquelógicas, são quase sempre peças decorativas. Os proprietários dessas peças usavam-nas em vida e elas depois acompanhavam-nos na morte. O uso em vida dava poder à pessoa. Eram peças em jade, uma pedra preciosa mais valorizada que o ouro. É por isso que hoje conseguimos ter peças com cinco mil anos, porque estiveram enterradas e a terra protegeu-as.”

Descrito como artista mestiço ou miscigenado, José de Guimarães nasceu em 1939 na cidade que adotou como apelido artístico. Nele, os papéis de criador e de colecionador são uma e a mesma coisa. Segue há várias décadas a “figura arquetípica da caixa-relicário, uma caixa que contém objetos com fins propiciatórios e que vem da infância do artista em Guimarães, em que o relicário era uma presença muito marcante”, explicou Nuno Faria.

Daí a decisão, dir-se-ia natural, de incluir essas caixas-relicário na exposição no Museu do Oriente, como invólucros para jades e bronzes. Alguns dessas caixas são iluminadas por luzes LED vermelhas e brancas e lá dentro vêem-se, por exemplo, dragões do neolítico, de três a cinco mil anos antes de Cristo, ou um vaso em bronze, da dinastia Han, que servia para guardar moedas da época, umas pequenas conchas. “A natureza do trabalho de José de Guimarães é a procura de transculturalidade”, sublinhou o curador.

“Quando me deparo com um ambiente que não conheço, preciso de ir às raízes. Quando fui para o México pela primeira vez, achei que estava numa zona do mundo tão fascinante que procurei começar a tentar perceber o que era aquilo. O melhor, nestas situações, é ir às raízes, e as raízes estão na arqueologia. A gente, quando quer saber como é que os maias e o astecas funcionavam, é na arqueologia e nos códices que encontra resposta. Na China é a mesma coisa. Quando aprendemos uma cultura só através dos livros ou dos historiadores, não sabemos o que aprendemos, porque já a História teve as invenções que lhe quiseram dar”, explicou José de Guimarães.

Num momento de reflexão, no fim da visita guiada, o arquiteto Pedro Campos Costa afirmou que esta exposição tem a “capacidade de ser complexa por juntar objetos e ideias distintos”, o que hoje “é cada vez mais raro. “Hoje as narrativas são cada vez mais planas, aparecem pela internet, o conhecimento está muito distribuído, mas cada vez é mais fino, menos tridimensional, menos complexo, menos perturbador. Parece que temos receio dessa perturbação. Os tempos que vivemos são reflexo dessa fala de capacidade de assimilação da complexidade.”

Exposição “Um Museu do Outro Mundo”, Museu do Oriente, Lisboa. De 16 de março a 3 de junho. Terça a domingo, 10h00-18h00. Entrada: 6 euros. Sexta, 10h00-22h00, com entrada gratuita a partir das 18h00.