Ela delega mais. E endoutrina menos. Confia mais. E telefona menos. Manda mais sms. E usa um grupo no WhatsApp. É menos irrevogável. E recua. Recuou, mesmo quando formou uma opinião firme num momento-chave da política nacional do último ano. Assunção Cristas não é Paulo Portas.

A seguir à tragédia dos fogos de Pedrógão Grande, a líder do CDS voltou atrás. Tinha uma opinião formada, mas revogável. Logo depois dos 64 mortos nos primeiros incêndios, Cristas quis apresentar uma moção de censura ao Governo. Mas como os membros da Comissão Executiva — o seu núcleo duro no partido — foram contra, acabou por voltar atrás nessa intenção que não chegou a ser pública. Passados poucos meses, perante a repetição dos grandes fogos, e de mais mortes e de mais tragédias, avançou mesmo: levou ao Parlamento uma moção de censura por o Estado ter falhado daquela maneira, agora apoiada pela direção. Portas teria recuado? Não sabemos. Mas quando lançou a sua demissão “irrevogável”, em 2013, nem sequer informou a direção do partido.

Paulo Portas com Assunção Cristas na campanha das autárquicas em Lisboa

Suceder há dois anos, no Congresso de Gondomar, a um líder que se confundia com o partido não ia ser fácil. Paulo Portas chefiou o CDS 16 anos e Assunção Cristas tem apenas um par de anos de liderança para se mostrar e fazer esquecer um ídolo para muitos militantes e dirigentes. Sobretudo entre os mais novos, poucos se lembram de viver o CDS sem o a influência do ex-diretor d’ O Independente. Era o partido unipessoal, feito à imagem do líder. É uma das críticas, por exemplo, que Filipe Lobo d’Ávila faz agora à liderança de Cristas. Era uma das críticas mais recorrentes a Paulo Portas.

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Outubro de 2017 foi a grande prova: os 21% de votos para a câmara de Lisboa colocaram Paulo Portas, em definitivo, na galeria dos ex-presidentes. Passados dois anos, o partido existe com Cristas para além de Portas e ao mesmo tempo graças a Portas. “E com mais ambição”, reconhece um antigo colaborador do ex-líder.

Até Carlos César, o líder da bancada parlamentar do PS, disse esta semana na TSF — mesmo que fosse para atacar indiretamente o PSD — que “o CDS de Cristas é um CDS diferente do de Portas. Tem mais ambição”.

“Gostaria que o CDS tivesse mudado mais”, avalia José Ribeiro e Castro, o líder que intercalou as duas fases de Portas. Ainda assim, faz uma apreciação positiva de Assunção Cristas: “Acho que o CDS está hoje, em termos de forma, melhor do que estava no congresso de Gondomar há dois anos”.

O portismo sem Portas e a simplificação do discurso

Afinal, o que mudou no CDS durante estes dois anos de Cristas sem Portas? Se olharmos para os nomes na cúpula, quase nada. A direção da líder quase replica a equipa anterior, e os novos elementos ascenderam na linha do portismo. As maiores diferenças são de estilo: para fora e para dentro do partido. Paulo, homem, sem filhos, jornalista, desde sempre a fazer jornalismo político e política nos jornais. Assunção, mulher, casada, quatro filhos, professora universitária, uma figura recente na política. Para ponto de partida não é pouco.

Mais do que isso, há uma diferença geracional. Paulo Portas posicionou-se desde muito jovem à direita, marcado pelo PREC. Assunção Cristas não tem essas memórias. Nem do Estado Novo. Nem da revolução. Ainda nasceu em Luanda, tem as influências familiares, mas é a primeira presidente de um partido português que nasceu depois do 25 de Abril.

Assunção Cristas apostou numa simplificação da mensagem para conquistar camadas mais desfavorecidas da populçação

“O Paulo estava sempre a endoutrinar”, diz um dirigente que pertenceu às direções de ambos. “O líder dizia tudo o que tínhamos de pensar” — embora não fosse explícito a dizer que era aquilo que eles tinham de pensar. “Era capaz de falar hora e meia a fazer análise política. A Assunção fala vinte minutos de propostas”.  Portas ia gravando uma cassete doutrinária na cabeça deles. Assunção funciona de outra maneira.

“Trabalhei anos muito perto com Paulo Portas e tive a sorte de verificar e acompanhar o brilhantismo dele”, diz Filipe Lobo d’Ávila, uma das vozes que vai apontando críticas à nova liderança. Embora ressalve que não acompanhou o “trabalho mais próximo de ação política da direção” considera que, “no tempo de Portas, havia a sensação de uma grande capacidade de “antecipar e gerar novos factos políticos”, que agora é menos acentuada. “Hoje, julgo que o CDS vai um pouco mais atrás da corrente, em temas que estão na agenda pública. E que se perdeu um pouco a capacidade de antecipação”. Lobo d’Ávila reconhece o potencial de crescimento de Assunção Cristas: “O facto de termos uma presidente que é mulher, associado à estratégia e imagem da Assunção, o CDS ganhou um élan eleitoral que o Paulo nunca tinha conseguido”.

Há aspetos em que ser uma recém chegada pode ser uma vantagem, como sublinha o vice-presidente do partido, Adolfo Mesquita Nunes: “Sendo uma figura com um passado mais recente na política do que Paulo Portas, Assunção traz uma imagem de renovação ao mesmo tempo que não tem os anticorpos de quem está há mais anos na política.

Uma das principais diferenças em relação ao passado, é a simplificação da mensagem para fora. Baixou o nível de sofisticação do discurso. O objetivo é chegar ao povo e à classe média baixa que vota PSD. “Tira-se a carga ideológica do discurso, mas não das propostas”, explica um dirigente ao Observador. “E descomplexar o voto no CDS”. Como parece ter acontecido em Lisboa. É propositado. Portas usava os soundbites e as frases orelhudas, estudadas, para os títulos dos jornais. Mas Portas acabava por ser visto — até nos focus groups internos — como demasiado inteligente. Era por isso, alvo de todo o tipo de desconfianças. Isso era agravado por parecer sempre demasiado plástico e ensaiado. Cristas não. Parece mais natural, tão normal como “the girl next door”, como comentou com o Observador Nuno Magalhães, líder parlamentar do CDS.

O palco parlamentar e a agressividade com Costa

Paulo Portas podia ser um tribuno com o dom da oratória, e Assunção Cristas pode não ter a mesma escola, mas a líder do partido usa o palco do Parlamento para marcar posição e a agenda do CDS. Só que, em vez da oratória, recorre a outro trunfo: a agressividade. Isso vê-se nos debates quinzenais com António Costa, onde Cristas faz perguntas curtas e diretas, dando muitas vezes continuidade aos temas de umas semanas para as outras — consoante as respostas, ou não respostas do primeiro-ministro.

O último debate quinzenal foi exemplo disso. Cristas tinha vários temas na manga, como as dívidas a fornecedores no setor da saúde ou a lei que obriga à limpeza das matas como prevenção dos incêndios. Mas o debate subiu de tom, com António Costa a provocar a líder do CDS por, desta vez, não lhe ter perguntado sobre temas que já nos últimos tempos eram habituais nas suas intervenções quinzenais. “Não me pergunta nada sobre os concursos para médicos especialistas, como perguntava há semanas, e sabe porquê? Porque está resolvido: abriu hoje um concurso para os médicos especialistas”, atirou-lhe Costa.

“O senhor mente!” Quantas vezes foi este Governo acusado de mentir?

E a dívida? A dívida era outro tema que Cristas não largava, até ir largando. A ideia é essa: Assunção Cristas escolhe temas, como a falta de investimento na Saúde, o tempo de espera nos hospitais, os atrasos nas cirurgias ou as dívidas a fornecedores, para questionar o primeiro-ministro insistentemente. É quando chega a vez de Assunção Cristas intervir que o debate sobe de tom — com António Costa a responder com a mesma agressividade.

A agressividade de Cristas para com António Costa tem sido uma marca. Na primeira parte do mandato chamou várias vezes mentiroso ao primeiro-ministro

O estilo é diferente, os tempos também. No atual xadrez político, com o CDS fora do Governo e fora da alçada do PSD, o espaço de manobra para o CDS defender temas sociais é maior agora. Quando estava no Governo, Portas chegava mesmo a pedir aos deputados que procurassem explicar aos portugueses o aumento de impostos que estava a ser executado pela coligação. Mas se hoje no CDS se aponta o dedo à preferência do “pragmatismo” em detrimento da “ideologia”, seria preciso recuar ao tempo em que Portas fez oposição a Sócrates para se ver um Portas mais doutrinário.

Portas era omnipresente. Cristas responsabiliza mais

Onde estes dois anos deixaram alguns dirigentes mais desamparados foi no acompanhamento dado pela liderança. Paulo Portas era um controlador quase obsessivo, dizem alguns dos que estiveram próximos do homem que liderou o CDS mais tempo. Sobretudo em relação ao que os outros dirigentes diziam em público ou na comunicação social. Assunção Cristas delega mais. Confia mais e aceita a conclusão do trabalho que descentralizou. “Isso responsabiliza mais as pessoas”, diz um membro da Executiva. No tempo de Portas, caso corresse mal, a culpa era de quem decidia.

Se com Portas os dirigentes passavam muito mais tempo ao telefone, com Cristas a comunicação faz-se mais por SMS do que por longas conversas noite fora. Mais tecnológica, a presidente do CDS tem um grupo no WhatsApp com algumas pessoas da executiva e outros, para trocar ideias e notícias.

“Ser controlador era má fama do Paulo”, diz Nuno Magalhães. “Nunca senti. A questão é que ele era omnipresente. Não dormia, não tinha família. Ele era disponível. Não é que a Assunção seja indisponível. Já me chegou a ligar à meia noite e meia”. Mas Cristas é menos omnipresente, dizem todas as fontes contactadas pelo Observador. “Ele passava horas ao telefone. Ela tem mais vida familiar”. Com Portas havia uma tentação de lhe perguntar o que dizer, por exemplo, quando os dirigentes iam à televisão: “Ele sugeria uma frase e depois era essa que saía…”, recorda Magalhães.

Uma líder que se define a correr riscos: a câmara de Lisboa

O momento definidor de Assunção Cristas nestes dois anos foi em setembro de 2016, quando arriscou o anúncio da candidatura à Câmara Municipal de Lisboa um ano antes das eleições. Adiantou-se ao PSD, não sabia quem ia ser o candidato dos sociais-democratas — nunca acreditou que Pedro Santana Lopes avançasse — e obrigou Passos Coelho a definir-se. Não só o líder laranja não a apoiou, como a escolha que fez de Teresa Leal Coelho acabou por contribuir para a sua própria queda no partido.

“Foi temerária”, como diz um portista-cristista. “Arrancou com a candidatura sem saber quem era o candidato do PSD. O Paulo procurava dominar todas as peça do tabuleiro antes de decidir.” Correu riscos. Podia ter-se dado mal. Mas tornou-se na segunda força política em Lisboa, contribuiu — com o Bloco de Esquerda — para tirar a maioria ao PS na autarquia e pulverizou o PSD na capital. As eleições autárquicas foram a confirmação de Cristas, que agora chega com aura de vencedora ao congresso de Lamego. Se vai ser um conclave de “relatório e contas” — como já definiu Filipe Lobo d’Ávila —, em que a líder vai cobrar os créditos e mostrar os seus ativos.

Ao candidatar-se a Lisboa um ano antes das eleições, Cristas correu um risco. Neste caso, compensou

“Ter obtido um resultado brilhante em Lisboa vai marcar muito o espírito deste congresso”, diz o ex-líder José Ribeiro e Castro ao Observador. “É um espírito em cenário radiante, mas irreal”, acrescenta este histórico do partido que não estará presente em Lamego. Para Ribeiro e Castro, há “garra e motivação”, mas o que contam são as próximas legislativas: “Tenho algum receio que depois dos dois congressos, do PSD e do CDS o vencedor possa ser a ‘geringonça'”. O que preocupa o ex-líder é a decisão tão antecipada de os dois partidos irem separados às eleições.

Pelo contrário, Assunção Cristas elevou a ambição do discurso. A vitória em Lisboa já a leva a terrenos em que Portas arriscava menos sem parecer sem sentido: Assunção assume que quer ser primeira-ministra, disse-o numa entrevista recente ao Observador.

“Anima-nos pensar que todo o trabalho de casa que fizemos em Lisboa, que foi intenso, feito com tempo, esse método de trabalho levou-nos a este resultado. Agora, o que temos de fazer é exatamente o mesmo: trabalhar para dizer aos portugueses que o CDS está preparado para governar e governar numa posição cimeira. Estou preparada, hei de preparar-me para dizer aos portugueses que sou capaz de ser primeira-ministra.”

A questão ideológica: doutrina ou pragmatismo?

A candidatura de Cristas à câmara de Lisboa não foi muito marcada do ponto de vista ideológico, sobretudo se for comparada com a campanha de Portas em 2001 — que era marcadíssima por temas de direita pura e dura, como a insegurança ou a imigração. Estes temas nada têm a ver com a proposta mais emblemática da líder do CDS para Lisboa: a construção de 20 estações de metro. No entanto, este “pragmatismo” ideológico que agora alguns críticos lhe apontam já tinha começado com Paulo Portas, pelo menos a partir de 2009.

Adolfo Mesquita Nunes, vice presidente do partido, recorda que, “a partir de 2009, Portas iniciou um movimento de refrescamento e atualização do CDS, com a campanha ‘há cada vez mais gente a pensar como nós'”. Segundo Mesquita Nunes, com Cristas não é diferente: “Trouxe uma energia nova a essa dinâmica, criando condições para alargar ainda mais a base eleitoral do CDS.”

Para se justificar, há anos que Paulo Portas tinha um novo soundbite: “Penso à direita e governo ao centro”, costumava responder quando o questionavam sobre a perda das bandeiras quando chegava ao poder.

O CDS tem centrado o discurso em alguns temas, como a saúde, a educação ou a natalidade. Mas também já tinha sido a dívida ou a economia

“É um conservador realista. O conservadorismo define-se quando se reage a alguma coisa”, dizia João Pereira Coutinho há dois anos ao Observador, sobre a evolução ideológica de Paulo Portas. Essa reação às circunstâncias é a capacidade de adaptação ao meio ambiente. “De todos os líderes da direita é o mais bem conseguido, porque é uma figura da direita, porque não está à esquerda da direita”, considerava Pereira Coutinho.

Paulo Portas era a cara da direita em Portugal, “as fuças” da direita, como um dia chegou a dizer a António Guterres. Tinha uma máxima, que era “à direita do CDS, uma parede”. Ou seja, o partido podia ser pragmático, mas agregar as várias direitas, de modo a não deixar espaço aos extremismos. Já Assunção Cristas está a ser acusada de deixar cair a doutrina, por nem sequer mencionado a democracia-cristã na sua moção de estratégia global.

Na verdade, está a seguir aquilo que o ex-ministro da Defesa e dos Negócios Estrangeiros disse no seu último discurso parlamentar de despedida, em 2016: “Se insistirmos em pôr a ideologia à frente da realidade, acabaremos por produzir ilusões e não a fazer o nosso primeiro dever: melhorar, na medida do possível, as políticas viáveis para as pessoas em concreto”.

Mas se a direita com pragmatismo se tornou num dos maiores legados de Portas, Cristas mantém e reforça o rumo. Para Nuno Magalhães, não mudou assim tanto: “Continua a falar dos temas: segurança, educação, lavoura, impostos, taxas e taxinhas, mas há alguns temas, que tem a ver com a personalidade dela, que ganham mais visibilidade, como a demografia ou envelhecimento ativo, que não são do quotidiano e dia dia”.

Filipe Lobo d’Ávila concorda: “Esta questão do pragmatismo diz-me pouco. O CDS foi sempre pragmático. Vejo com dificuldade, um partido que habituado a participar no governo não queira ser pragmático. O CDS nunca foi dogmático, foi sempre pragmático. Outra coisa é dizer que queremos propostas concretas que vão ao encontro das pessoas e que entroncam no que é a história do partido”.

Embora não seja uma crítica direta a Assunção Cristas, o deputado conservador diz que é preciso, sobretudo, projetar uma visão para o país: “É uma questão puramente interna, que não se resume ao pragmatismo, mas à necessidade de saber qual é o ADN do CDS e como se projeta nas pessoas e num projecto global. A situação que hoje temos até do ponto de vista económico devia levar os partidos de centro direita a pensar a narrativa e abordagem”. E lança um desafio a Assunção Cristas: “Dar o passo de um partido unipessoal para um partido de projeto. Acho que regredimos nisso. A minha critica essencial é essa”, afirma ao Observador. “Devemos mostrar que a líder, com a imagem que toda a gente gosta, sabe olhar para o país e para o que o país precisará daqui a 5 ou 10 anos. Essa visão faz falta”.

Com Rita Dinis