Número um, Mlynarczyk. Número dois, João Pinto. Número três, Inácio. Número quatro, Eduardo Luís. Número cinco, Celso. Número seis, Quim. Número sete, Jaime Magalhães. Número oito, Madjer. Número nove, Sousa. Número dez, Futre. Número onze, André. Eis o famoso 11 do Porto na final da Taça dos Campeões em 1987. Então e onde anda o capitão Lima Pereira? E o goleador Fernando Gomes? Lesionados, tanto um como outro. E entregues ao líder do departamento médico, um dos homens mais importantes do título europeu. Domingos Gomes até nem marca de calcanhar nem encosta o pé à bola como Juary e é igualmente um artista de primeira água. Um artista da medicina e não só. Do bem estar, do bem receber e do bem falar. Encontramo-lo no Porto, no clube de ténis Lawn, ali na Foz, com o estilo de sempre, à Bee Gee: cabelo comprido na justa medida, barba aparada e óculos pós-modernos. Que comece a festa dos 30 anos daquele irrepetível 2-1 ao Bayern.

Domingos Gomes, como vai?
Tudo em forma, meu amigo. Casado, dois filhos e uma neta chamada Benedita. Vou buscá-la daqui a nada para a levar ao ballet.

Vejo-o sempre em forma há anos e anos. Desculpe lá a pergunta, nasceu quando?
A três Julho 1940. Quase quase a fazer a capicua 77.

Espetáculo. É de onde?
Nasci em Ribeira de Pena, uma terra muito bonita no Barroso (Minho), a 15 minutos de Pedras Salgadas e, agora, a meia-hora de Chaves e Vila Real, junto ao Tâmega.

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Nasceu aí para o futebol?
Só ouvia rádio, os relatos do Artur Agostinho.

Quando vê os primeiros jogos de futebol?
Só mais tarde tarde, quando vim estudar para o Porto.

Ia às Antas?
Então não? Havia tempo de sobra e eu ainda não tinha amigos por aí além, portanto ia às Antas. Ia ver o Sporting e a Académica. Está como aquela cara de quem diz ‘mas como é que um caramelo destes passa a ser do Porto?’

Está lá perto.
Ora bem, a sorte é um belo detalhe da vida. Acompanha-nos sempre. Um belo dia, aparece-me o Hernâni Gonçalves, o Bitaites, no hospital. Ao seu lado, o José Maria Pedroto.

E então?
O Pedroto estava com uma dor de dentes daquelas. O médico responsável não estava lá e o Bitaites, com a graça que o caracteriza, disse ao Pedroto ‘está ali o Bee Gee e ele resolve-te o problema.’ Atenção, por essa altura, já era eu quem fazia os registos cardíacos da equipa de natação do Porto.

E já era o Bee Gee?
Sou um Bee Gee desde 1969. Foi a última vez que fiz a barba, quando saí de Alcântara rumo ao Lanceiros 2, na Polícia Militar, para entregar as botas e isso tudo.

E esse cabelo?
Por ter o cabelo grande, fiquei de castigo por um fim-de-semana.

E os outros fins-de-semana?
Dava um jeito ao cabelo, molhava-o e acertava-o atrás das orelhas para não parecer tão grande e safava-me.

Formou-se quando?
Formei-me em 1970 na Faculdade de Medicina do Porto, depois de ter ido combater para Moçambique. A nota mais baixa foi um 14, a mais alta um 19.

Como é que se concilia os estudos no meio da guerra?
Sabia que nunca devia perder o contacto com a faculdade e fui fazendo umas cadeiras. Cortesia de uma amiga minha chamada Teresa Pimenta e, claro, do Veiga Simão. Um dia, entro no gabinete e está lá ele à minha frente ‘diga-me como e quando quer fazer as cadeiras’. Sabe como ia da Beira para Lourenço Marques?

Nem ideia?
De avião, com os outros soldados. Ia à faculdade e fazia uma cadeira por mês. Acabei o curso de seis anos no Porto.

E depois o FCP?
Ainda não. Fui docente da Faculdade e trabalhei antes de entrar no FCP.

Pelo Pedroto?
Sim, foi ele que me sugeriu depois daquela experiência da dor de dentes.

O Porto não tinha ninguém?
Na altura, já não. O doutor Santana teve um diferendo com o treinador da natação, um senhor inglês chamado Lorde que foi pouco lorde perante a filha do doutor, a Paula Santana. Houve um diferendo e a direcção do Porto foi a votos para definir quem saía. Empate. Houve então um desempate por voto de qualidade. Saiu o doutor Santana. Um mês e meio depois, o senhor Pedroto achou que deveria ser eu o substituto e propôs o meu nomes ao chefe de departamento do futebol.

Pinto da Costa?
Exacto.

O presidente era…
Américo de Sá.

Como é que era o Pedroto?
Encantador. Com olho para todos os pormenores do futebol. Isto de conquistar Norte, Sul, Este e Oeste de Portugal, depois a Europa e finalmente o Mundo, não é fácil. Começou bem antes, com Pedroto. Começou com a alimentação, com o abrir das torneiras de água.

As torneiras da água?
Havia um pensamento naquela época de que os jogadores não podiam beber água durante o treino ou o jogo. Vi aquilo e questionei o Pedroto. Ele olhou para mim e concordou ‘afinal, somos constituídos por 70% de água, não é?’ Na hora, ele mandou abrir as torneiras de água no estádio.

Antes das torneiras, falou da alimentação. Então?
Por exemplo, acabaram-se os sumos de laranja naturais. Dava diarreia aos jogadores. Tem de se optar por outras coisas. Outro exemplo: se havia gripes, desligava-se o ar condicionado e os jogadores passavam a ter mais qualidade de vida. Há mais, muito mais. Até tenho medo de me esquecer de alguma coisa. Olhe, começámos a usar fatos. Era um traço distintivo. Olhe, fomos o primeiro clube a levar cozinheiro para os jogos fora. O primeiro chef escapa-me o nome, o segundo foi o Hélio, que também trabalhou na selecção nacional. Com ele ao comando da alimentação, aquilo era um sossego. Isso é o Porto.

Isso é o Porto?
Antes de fazer o check-in aos quartos, o Porto fazia check-in à cozinha do hotel. Cortesia Luís César, outra figura indiscutível do Porto. Chegávamos lá com o maître e o menu na mão, enviado por faxe a 15 dias do jogo. Era aquilo e não se mexia por nada. E não mudávamos porque não devíamos. No sábado à noite, peixe assado ou grelhado. No domingo ao almoço, antes do jogo, pernas ou peito de frango. Ou a vitela. Quando fazíamos pasta de bolonhesa ou uma coisa parecia, lá vinha o Madjer com o ‘pas porc’.

Pas porc?
Nada de porco. E não, nunca usámos porco na nossa alimentação. Por nada de especial, só porque sim.

A 15 dias do jogo, enviavam faxes?
Para o hotel, com a lista dos pratos e aquilo não se desviava nem um milímetro. Quando fomos jogar a Kiev, para a meia-final da Taça dos Campeões 1987, e porque Chernobyl tinha sido muito recente, levámos tudo daqui, até hortaliças. Isso já é o tempo do Artur Jorge, o homem do rigor. Com ele, até os lugares nos autocarros estavam pré-designados. Na era do Artur, já ia tudo empratado para a mesa dos jogadores. Na altura do Pedroto, ainda havia empregados com travessas. Só depois é que se passa ao buffet, que, acho eu, ainda hoje perdura.

É o rigor a maior diferença entre Artur Jorge e Pedroto?
Com o Artur, há a responsabilização. O responsável é o médico, o responsável é o roupeiro, o responsável é o cozinheiro. Uma vez, um jogador do Porto lesiona-se durante o treino e o Artur liga-me para o hospital. ‘Ouve lá, és o médico da equipa?’ E eu: ‘Também sou médico do hospital.’ Ele: ‘preciso aqui de alguém permanentemente.’

E?
Meti uma licença sem vencimento para estar ao pé da equipa. Só me baldava para dar aulas na Faculdade [e esboça um sorriso generoso]

Ainda Pedroto. Acompanhou-o até ao fim?
Sempre, desde o primeiro até ao último dia. Estive lá em casa até a umas três horas antes de ele falecer.

Como é que estava?
Muito consciente, sempre a pensar no futebol e na família. Era um indivíduo com um instinto familiar notável. Foi isso que ele transmitiu ao próprio Porto, sabe?

O instinto familiar?
Exactamente. Uma vez, na Bélgica, só havia um homem na cozinha do hotel. Montou-se então um cordão humano para pôr a mesa, levar os pratos da sopa e tudo isso entre jogadores e dirigentes. Aquilo correu tão bem que até deu tempo para o chef Hélio de fazer creme queimado. A entreajuda é fundamental. O conceito de família está muito presente. Lá dentro, para fazer a máquina funcionar, o doutor Santana já tinha começado essa fase, eu desenvolvi-a com a ajuda de tanta gente: o Póvoas nos dois primeiros anos, o Romero…

Desculpe interromper, qual fase?
A de aumentar família portista, através de especialistas em todas as áreas a cobrir toda a gente.

Toda a gente?
Jogadores, mulheres dos jogadores, filhos dos jogadores, pais dos jogadores e por aí fora. Fazíamos tudo para que o jogador só se preocupasse com a bola, só com a bola, nada mais. Por isso, aumentámos os recursos humanos e de que maneira. Quando cheguei ao Porto, a área do departamento médico era de 6 m2, agora é de 20 mil. Veja bem.

E que família era essa?
Desde o radiologista Pinto Leite, às análises do Carlos Torres, ao ginecologista Silva Carvalho, ao homem das águas, ao pediatra, ao nutricionista, ao cirurgião. Éramos uma larga família, em que todos se preocupavam e cuidavam de todos. Sem exceção. Só assim é que se controlava tudo. Dou-lhe um exemplo: internávamos por 24 horas um indivíduo com traumatismo craniano. Fosse agudo, grave, leve, assim-assim ou nada de especial. Havia um entendimento entre a estrutura. Como disse o Juary há um ano ou assim, ‘nós estávamos muito bem porque o departamento médico estava sempre atento à nossa saúde; se estivéssemos mal, o médico aparecia lá em casa e tratava da gente.’

Sem exceção?
Zero exceções. Lembro-me de um outro episódio com o treinador do Porto, já depois do Pedroto.

Quem?
Bobby Robson. Acabámos a pré-época e voltámos para o Porto. Quando cá cheguei, fiz as malas com a família e fomos para o Algarve. Mal meto o pé no Sul, o Bobby Robson liga-me. “Meu doutor, aconteceu-me aqui uma coisa qualquer muito grave no céu da boca, ajude-me.’ Lá fui eu, de volta para o Porto, com a autorização do presidente. Fomos a Inglaterra, onde também fui com o Pedroto. Só que o Pedroto foi Londres, o Robson foi Ipswich, a sua terra-natal. Fizeram-se os testes todos e acompanhei-o do início ao fim. Ele acabou por recuperar. Primeiro lá, depois cá. E voltou a treinar. E voltou a ser campeão português, com o Inácio e o Mourinho.

E histórias com jogadores?
Uyyyyyyy.

Há jogadores rijos?
Há os rijos e há, por exemplo, o André. Um dia,o André queixou-se de uma coisa quente no pé. Era sangue, o gémeo interno estava roto e ele continuava a correr como se nada fosse. É uma coisa do outro mundo. Há jogadores assim.

Mais, mais.
Em especial, os carregadores de piano: Geraldão, Celso, Branco, Jorge Costa. Olhe, o Jorge Costa foi operado aos dois joelhos e até os comia. Tudo depende dos jogadores. Há ainda Lima Pereira, Eurico, Inácio. O Inácio era uma personalidade fora do normal, com um pé esquerdo fantástico: nada de guerras, só queria jogar. De repente, pimba, rompe-se todo. Ali na Amora. Só depois é que nos apercebemos que estava a jogar lesionado há algum tempo. Há coisas assim, que simplesmente acontecem sem nos darmos conta.

Essas lesões assustam um médico?
Sempre, é sempre arrepiante ver e, sobretudo, dar a notícia ao jogador de que vai ficar de fora por um ano. Ou um mês. Ou uma semana que seja. É sempre duro para um jogador. A má notícia implica a base para viver, para renovar contratos. O Jaime Pacheco, por exemplo. Ele é cá um brincalhão, tudo o que faz é com alegria. Vinha de uma rotura cruzado-interior, contraída no Estádio da Luz [3-1 para o Benfica com hat-trick de Rui Águas], quatro meses antes. Viajou connosco à mesma para Viena e treinou-se. Só que íamos forçar o joelho dele e o dano seria irreversível. Entre jogar com onze ou dez-e-meio, fomos pela lógica.

Quais as lesões mais arrepiantes?
O brasileiro dizia quebrou, o português partiu. Eles sabiam reconhecer a gravidade da lesão porque ouviam o barulho, parecido com o de uma castanha [Domingos Gomes fecha o punho e dá um murro no ar enquanto diz ‘paaac’]. Lembro-me bem de uma do Rodolfo aos cruzamentos-interiores. Uma do Octávio, um elemento do mais agregador que vi, tanto como jogador, tanto como adjunto do Artur, na Corunha ou em Vigo, não me lembro bem agora. Foi uma fratura de perónio e tíbia. Uma do Duda. Tinha sentido um formigueiro na mão em Madrid, num jogo com o Real Madrid para a Taça dos Campeões, e não nos disse nada. Dois meses depois, ou pouco mais que isso, estendeu-se ao comprido no Bonfim. Mal o vi, disse aos bombeiros para não lhe tocarem. Foi para o Hospital de Santa Maria e daí para Paris. Acabou aí a época e ainda estávamos em Fevereiro.

Como é que se viam essas lesões?
Na altura, era à mão. cintigrafia óssea aguda crónica ou sub-aguda, a nível muscular.

https://www.youtube.com/watch?v=yMal1TGe5Jc

À mão?
À mão [e esboça um sorriso largo].

Tem exemplo desses tratamentos?
Desses e de outros. Final da Taça dos Campeões, Porto-Bayern em Viena. O Madjer marca aquele golo de calcanhar, dá umas corridas e vem ser assistido à linha com uma contractura nos gémeos. Saco de um spray que faz de gelo, que tem de ser dado a 35 cm de distância por dois/três segundos. Senão, queima. O Madjer sai, leva o spray, pede para entrar, recebe a bola, dribla um jogador do Bayern e mete na área para o 2-1 do Juary. Imagine agora que o spray era mal dado e o Madjer parasse em vez de acelerar pela linha? Lá iam puxar as orelhas ao departamento médico.

No intervalo dessa final, está 1-0 para o Bayern. O que se passou no balneário?
O Artur era sempre pragmático. Disse ‘têm 45 minutos, já sabem o que têm de fazer, desenrasquem-se, depois não venham chorar’. Atenção, nem estive o tempo todo no balneário porque fui atender a mulher do presidente da câmara do Porto, que desmaiou, e o presidente que tinha batido com a cabeça no tecto.

Então porquê?
Tínhamos feito uma proposta inovadora de produzir a parte do jet-lag ainda em Portugal.

Como?
Pedimos informações à TAP sobre os cuidados a ter com o jet-lag e chegámos à conclusão que era preciso começar a trabalhar no horário japonês a três dias da partida para Tóquio.

Ainda aqui em Portugal, portanto?
Exatamente.

Funcionava como?
No primeiro dia, treinámos às três da manhã. No segundo, às quatro. No terceiro, às cinco.

Esse plano foi aceite na boa?
Quando apresentámos o plano ao Ivic, ele atirou a papelada toda para o chão enquando gritava qualquer coisa em jugoslavo. Imagino que palavrões. Só que ali no Porto era assim: quem mandava, mandava. O Teles Roxo concordava, o Porto concordava e ponto final. Dizem que o Carlos Lopes não ligava a isso do jet-lag para nada. Há pessoas assim: o Carlos entrava, avançava e aí vou eu. Só que a nossa diferença era de 9 horas e a adaptação era crucial. Tinha de ser. Aterrámos a meio do dia e começámos a mexer. Só dormíamos à noite.

Qual a reação dos jogadores?
De total aceitação. Era uma confiança mútua entre as partes, tudo era feito para o bem comum.

A que horas acabou esse dia?
Muito, muuuuito tarde. Um dia de festa, o final de uma época cheia de lesões. Nesses dois anos, tivemos toda a equipa lesionada e 11 lesões que levaram a cirurgias, entre ossos partidos, roturas musculares etecetera etecetera. Uma catástrofe entre pequenas e grandes coisas.

Diga-me uma pequena.
Digo, pois. Em Bröndby, o Mlynarczyk tinha uma fratura de um dedo numa mão. Decidimos usar uma tala das luvas e ele ainda tirou duas ou três bolas da baliza. Também em Bröndby, o Casagrande lesiona-se gravemente com uma fratura do perónio. Teve de ser encavilhado.

O que é isso?
Teve de levar uma placa para segurar os ossos, senão abriam e fazia a espargata. Mesmo com o pé virado ao contrário, ele queria entrar e tivemos de o agarrar no chão para impedi-lo.

Entra o Juary…
[Domingos Gomes como se levanta do sofá, empolgado] E marca o golo da qualificação. Na baliza, Schmeichel. O Juary era um bom, muito bom rapaz. Lembro-me de nos ter marcado dois golos pelo Inter em Barquisimeto, lá em cima no petróleo, na Venezuela. Era um torneio com Vasco, Real Madrid, Barcelona e Inter. No primeiro jogo, 2-2 com o Inter e dois golos desse gajo com os joelhos valvos.

Quê?
Os joelhos para dentro.

E aqui em Portugal?
Um gajo encantador. Entrava a 15, 10, 8 minutos e ele na boa. Sempre.


O Futre é que era o abono de família. Claro que tinha de estar lá o Gomes, ao primeiro ou ao segundo poste. Estávamos em Milão, a jogar o Mundialito organizado pelo Berlusconi, quando ele saiu para o Atlético Madrid e eu chorei.

A sério?
O puto era encantador. Ele não tinha a mínima culpa do assédio das pequenas. Eu vi-as a dizer ‘quero dormir contigo’ e ele a responder-lhes ‘tás maluca’ à porta do autocarro do FCP. Sempre que me vê, pergunta-me pelo Miguel, o meu filho. E pergunta se ele continua assim [Domingos Gomes faz o gesto de roer a unha].

Que memória.
Era extraordinariamente bom rapaz. Naquele tempo, os jogadores tinham de chegar entre as 10 e as 10.30 para o treino matinal. O Robson nunca entendeu a tolerãncia e perguntava-me ‘porque é que o treino não é às 10 ou às 10.30?’ Lá lhe explicava que o trânsito e tal, só que ele nunca se deixou convencer [Domingos Gomes volta a sorrir como se estivesse a lembrar de tudo naquele preciso instante]

E o Futre?
O Futre chegava mais cedo e ia dormir para o departamento médico. Sabe como é que o acordavam?

Nem ideia.
Com um balde de água fria em cima dele.

Eisch. E a história de Milão?
Ah é verdade. Num dia, o Futre estava ali connosco. No outro, já não. Quando os jogadores se juntaram, dei conta da falta de um jogador. Falta o Futre, disse eu ao Rodolfo Moura e foi ai que ele me contou sobre a transferência. Chorei. O rapaz era uma jóia. Nunca mais me esqueço que ele queria comer uma sandes de galinha no Hotel Tivoli em vez do iogurte com as seis bolachas. Ele disse-me ‘hoje vou comer a sandes de galinha’.

E comia?
Não. Ele bem ligou para o serviço de quartos, só que o hotel tinha ordens explícitas do Porto para dar isto e não aquilo.

A velha questão do controlo.
Há uma história imperdível, com o Pedroto. Certo dia, comprei um casaco vermelho em Andorra. Aquilo era bonito, impecável, um kispo especial. Vamos jogar a Guimarães, entro em campo com aquilo e o Pedroto olha-me de lado. Às tantas, com o jogo a correr mal, ele vira-se para mim e diz-me ‘ó doutor, tire lá essa cor’. Acto contínuo, diz ‘ò agostinho, traz lá uma coisa azul para o doutor’.

O Pedroto era mesmo um caso especial.
Sabia tudo com antecipação. Ele era tudo: omnipresente e omnisciente. Um dia, diz-me assim do nada ‘doutor, não há tri’. Então, perguntei-lhe e ele ‘uiiiiiii, há aqui muita gente que não se quer chegar à frente’.

O Porto do Pedroto é o primeiro a lançar a semente europeia com a final em 1984.
Quando viemos de Aberdeen [1-0 de Vermelhinho, na 2.ª das meias-finais da Taça das Taças], a pista do Pedras Rubras estava tão cheia do povo unido, tudo tão espremido e apertado, que tivemos de aterrar em Lisboa.

Nããããã.
É como lhe digo, só fomos para o Porto de comboio.

E essa final com a Juventus em Basileia?
Os jogadores estava extremamente nervosos e isso notou-se ao almoço quando se queixaram da qualidade do peixe, que tinha sido levado daqui. Foram para o campo e até jogaram bem, só que nervosos. O Zé Beto era um desses casos. A equipa ainda não estava psicologicamente madura e isso até foi bom para o sucedido três anos depois, em Viena e também em Tóquio.

Em Viena, é o Artur Jorge. Em Tóquio, é já o Ivic.
Nunca mais me esqueço de uma do ivic. Foi na Luz, um Benfica-Porto. Estava sentado no banco mais a norte. E aquele adjunto do Mourinho, como é que se chama?

O Silvino?
O Silvino, esse mesmo, faz uma luxação no cotovelo [Domingos Gomes exemplifica por gestos com graça]. Isto [o cotovelo] salta e o gajo fica parado. Cai e não se mexe mais. Levantei-me e disse ‘Rodolfo, vamos embora’. Ajudo o Silvino e os adeptos do Benfica aplaudem o gesto. Chego ao banco e diz-me o Ivic ‘isto é uma guuuera’. E eu ‘uma guerra, não; sou médico e tenho de estar nas duas partes.’

Mourinho, que tal?
Já chamava a atenção e mandava-me muitos bitaites. Já era um homem atento e era ele quem fazia os esquemas de treinos. Ainda me lembro bem de um dirigente do Porto a chamar o Mourinho de funcionário. Veja lá bem onde está o funcionário.

Como eram os clássicos na Luz e em Alvalade?
Animados [Domingos Gomes atira um sorriso matreiro]. Por acaso, tive sempre más receções em Alvalade. E olhe que era simpatizante do Sporting antes de chegar ao Porto. Depois, filhos de amigos meus mudaram para o Porto e até o meu irmão ficou do Porto. Bom, adiante, é um pormenor. No sector sul, o pessoal não perdoava. Quando ia por ali, só via os gajos com os corninhos para cima. Uma vez, o Romeu é expulso e levantamo-nos do banco. Chega um polícia e ‘você está preso’.

Como assim?
Você não sabe?

Do quê?
Em Alvalade, era moda os polícias estarem ali a provocar-nos. Na Luz, eram os bombeiros. Diziam coisas entre dentes para picar. Nesse dia em Alvalade, o agente levou-me ao seu superior para ser identificado. Cheguei lá e ele ‘identifique-se’. Para quê? Perguntei-lhe. Vá ali falar com o árbitro e veja lá se o meu nome não está na ficha de jogo?

E o episódio do varandim?
O Porto chegou a Alvalade e estavam os adeptos a atirar garrafas lá de cima. O presidente vai sair do autocarro, em primeiro lugar, como sempre, e mete-se logo lá dentro de novo. Ainda dá para entrar na 10A. Quando meto a cabeça cá fora, vejo uma série de pessoas umas em cima das outras. Quero ajudá-las, só que o chefe da polícia não me deixa ir. Digo-lhe que sou médico e lá entro naquele mundo. Vejo o estado das pessoas e reentro na 10A para ir buscar as borboletas ao balneário.

Borboletas?
Agulhas finas, com cortisona, para o traumatismo craniano. Comecei a trabalhar e chega uma ambulância espécie de INEM, 10/15 minutos depois.

Foi agredido durante esse processo?
Sim, as garrafas continuavam a cair lá de cima. É normal, eles nem sabiam o que se passava cá em baixo, a 3 metros de distância.

Como era o seu relacionamento com os médicos de Benfica e Sporting?
Sempre ótima, iam tomar um café ao meu gabinete. Aos estrangeiros, levava-os a almoçar. Ainda dei uns dinheiros ao gajo do Shakhtar Donetsk para comprar umas coisas à mulher e sabe o que ele me faz no jogo da 2.ª mão?

Nem ideia.
Dá-me um relógio automático, que ainda guardo, umas flores para a minha mulher e uma matrioska. Peço-lhe então mais umas matrioskas e traz-me umas 40 de um armazém. E ainda me dá rublos para a minha mulher gastar.

Havia algum código entre o Domingos Gomes e os jogadores?
Quando entrava dentro de campo e piscavam-me o olho, já sabia que era para queimar tempo. Ahahah, parece que estou a ver o Paulinho Santos fazer aquele gesto de fixe em Alvalade. Aquilo foi captado pela câmaras e tudo, ahahah. Há outra boa do Paulinho.

Conte lá.
Uma vez, ele lesiona-se e está estendido. Entramos em campo e o Rodolfo é que era a lebre. Eu corria sempre atrás dele, meio desengonçado. Aliás, os jogadores metiam-se comigo porque corria com o corpo muito para a frente. Verdade seja dita, eles brincavam comigo por qualquer coisa. Se tivesse as chuteiras desabotoadas, lá vinha piada. Bom, corro atrás do Rodolfo e, de repente, travei. Não faço outra coisa e caio quase em cima do Paulinho. Ele reagiu logo ‘você está aqui para nos lesionar, ò doutor?’

Isso era amarelo.
Recebi um, sabe?

Um cartão amarelo?
Exacto. Não me lembro do adversário nem do jogador, sei que foi nas Antas, no topo ponte sul. Alguém partiu sem querer a tíbia ao André e ele entrei meio desvairado. Fui ver do André e depois atirei-me ao gajo. O árbitro viu a cena e acalmou-me com um ‘ò doutor, isso não se faz’.

E outros cartões desses?
No tempo do António Oliveira no Porto, em que aquilo era complicado e daí a minha saída, deixei de escrever para o jornal A Bola. Proibiram-me. E fui médico da seleção por 12 horas.

Horas?
Horas, sim. O Artur Jorge telefona-me na manhã do 10 Junho, estava eu a chegar ao Algarve. ‘Contigo, aceito qualquer coisa’, disse-lhe. À noite, recebo um telefonema ‘ò doutor, você queria ser médico da selecção? Nem pense nisso’. Fui ‘desnomeado’ em 12 horas.

O Artur Jorge ligou-lhe?
Não, não foi o Artur. Foi alguém de dentro da estrutura das Antas.

Contas feitas, quanto tempo no FCP?
23 anos de médico de campo, de equipa, de tudo mais três na natação. A minha alegria era fazer parte de duas famílias, a minha e a do Porto. Só havia uma condição: ia levar os meus filhos ao colégio todos os dias. Quando chegava a casa, à noite, o meu filho Miguel já tinha as balizas feitas no quarto para jogarmos à bola, que ainda hoje guardamos lá em casa, ou então brincávamos aos mini-matraquilhos.

Sai do Porto com António Oliveira, é isso?
Em definitivo, só com Fernando Santos. Com Oliveira foi um parêntesis.

Dedicou-se a quê nesse parêntesis?
Fui tirar pós-graduação aero-especial em Paris para ser médico da TAP. E fui deputado. É uma zona de poder. Intervi umas quatro vezes na Assembleia da República e, garanto-lhe, um indivíduo fica pequenino. Ainda defendi a lei 113/98, numa altura em que o presidente do PSD era Marcelo Rebelo de Sousa e o do grupo parlamentar Marques Mendes. Tambem trabalhei para a UEFA e a FIFA.

E foi bom?
Cansativo. Fiz 500 controlos anti-doping em 15 anos num tempo em que tudo era muito complicado em termos logísticos, o passar as amostras nos aeroportos e isso tudo.

Só trabalho, trabalho. E lazer? (além dos matraquilhos com o Miguel, claro)
Ahahah. Toco acordeão desde sempre. Levei-o para Moçambique e ainda hoje toco. Visto-me de gala, com o laçarote [Domingos Gomes parte-se a rir, nós também: um Bee Gee de laçarote é demais]. E conheci gente de todo o mundo, como o Kenneth Cooper, do teste Cooper, e a Linda Gray, do Dallas.

Uyyy, maravilha.
O elemento surpresa guardei-o para o fim.

Então?
Amália Rodrigues. Em 1990, telefonaram do Hotel Infante de Sagres para o Luís César. Nem esperei um segundo, fui logo a correr e levei tudo o que era necessário. Era um problema do coração. No outro dia, levei-a ao meu hospital e fizemos todos os exames. Eu nunca mais me esqueci daquele dia e ela também não. Ao ponto de ter feito uma dedicatória incrível num disco que ainda guardo com carinho.

Obrigado por tudo.
Essa é boa, obrigado eu pela atenção. E agora vou levá-lo ao meu taxista preferido. Chama-se Gabriel, lembra-se ele?

O lateral de Porto e Sporting?
Exactamente.

(meu dito, meu feito e Gabriel apresenta-se ao serviço a caminho da Campanhã; na viagem, mais uma entrevista pelas memórias de Pedroto e não só: “você, porventura, não se lembra mas eu, já com 30-e-poucos, joguei nos 7-1 pelo Sporting”)