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© André Correia

© André Correia

"Foi o mundo que me trouxe ao fado"

Destino, batalhas internas e uma viagem pelo mundo deram-lhe uma certeza: o norte na bússola de Carminho escolheria o fado. O novo álbum, "Canto", foi o mote para a conversa com o Observador.

Carminho vive nas aventuras e desventuras do fado desde os 12 anos. O que era uma certeza virou dúvida e foi preciso uma viagem de 11 meses pelo mundo para redescobrir a paixão. A cantora chama-lhe “sede”. Voltou com desejos de servir num bar à beira de um miradouro, em Lisboa, para manter o contacto com aventureiros de outras paragens. Queria saber quem eram, pois essa foi a pergunta que lhe permitiu encontrar-se. “O fado não me prende, liberta-me”, diz, segura do que quer, para onde vai e de onde vem. O último melhor conselho que recebeu foi na véspera da conversa com o Observador. Chegou de um taxista, que um dia gostou mais de outro alguém do que de ele próprio. “Perdeu tudo”, contou Carminho, com um sorriso contido e o olhar pesado, muito próprio de quem pensa a vida e sabe abraçar as angustias da caminhada.

Aos 30 anos, Carminho lançou o terceiro álbum — “Canto” –, que fala dela e de perguntas com as quais anda de mão dada. O disco reflete ainda sobre transformação e renovação. “Talvez não concorde com o ‘nunca voltes ao lugar onde foste feliz’ de Carlos Tê, porque é no lugar onde fomos felizes que nos vamos voltar a encontrar.”

“A Ponte”, a primeira canção do álbum, fala de uma margem esquerda da vida e do que estará do outro lado da ponte…

Não fui eu que escrevi todos os fados do disco. Esse poema foi escrito por Reinaldo Ferreira. A magia muitas vezes é essa, a de poder viajar em mundos que nos inspiram e levam a outros lugares. Eu identifiquei uma reflexão séria e muito universal. É uma canção sobre o que está para além desta nossa vida, daqui, a que nós vivemos e o que podemos agarrar, apalpar. Eu acredito que haja algo mais: a margem direita. Há sempre dúvidas, portanto tem a ver com astralidade, antepassados, futuro e Deus.

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Fez 30 anos em agosto. Foi peanuts ou mereceu viagem ao mundo das memórias e das decisões?

Foi normal. Os 30 anos não marcaram nenhum momento especial. Até ouvi dizer que vem aí a bonança, que depois dos 30 a vida melhora. Não sei se terá sido a minha avó a dizer isso. Se foi, é bom, ela é experiente… Há sempre um momento para se refletir. É importante haver reflexões constantes. É importante estar focada, centrada, com os pés na terra, perceber de onde venho. É bom lembrar as origens, o que me trouxe até aqui, para continuar de uma forma sustentável. Só posso dar saúde à minha arte e ao dom que me foi dado se me mantiver saudável no mundo. Agora estou a viver um momento de muita graça, que tenho de agradecer bastante. São muitas oportunidades fruto de muito trabalho. Há momentos certos nas horas certas.

E é bom estar sozinha nesses momentos de reflexão?

Eu gosto de estar sozinha, embora seja importante termos espelhos de nós próprios. Pessoas que nos espelham aquilo que somos e como estamos, que nos criticam. É importante escolher quem são essas pessoas, para que não haja perversidade na crítica e que me amem. A autocrítica é igualmente essencial: filtrar tudo isso, o que quero, onde estou, o que é preciso melhorar. Há sempre algo para melhorar. É como uma casa: quando se arranja a máquina de lavar, estraga-se o chuveiro. Temos de estar sempre em manutenção.

O fado soa melhor com a voz de uma mulher ou de um homem?

Não sei. Tenho referências tanto masculinas como femininas. Há muito essa questão: será que o fado é mais cantado por mulheres? Cantado é por ambos, agora depende do intérprete. Há homens e mulheres que soam muito bem e também há o contrário.

Carminho, fado, fadista,

© André Correia

A tal viagem pelo mundo que durou 11 meses, em 2007, ainda se reflete na música de hoje?

Essa viagem vai dar-me frutos toda a vida. Foram tantas as experiências, foi tudo tão concentrado… Há tantas conclusões que vou tirando ao longo do tempo. Cada vez que falo nisso vou tirando novas conclusões. Fui-me conhecendo melhor por viajar e vou conhecendo melhor que viagem foi esta que fiz. Influencia sempre as minhas escolhas, sim. Foram vários momentos e vou sempre lembrando coisas diferentes.

E cantou?

Não cantei fado. Tinha a pretensão de descobrir se o fado seria mesmo vital e descobri que sim. De repente, no fim, houve uma sede, uma sede de sobreviver porque já estava com secura. Também estava muito enriquecida, naquele momento, por outras culturas. Estive muito tempo a beber de outras culturas. Cantei música popular paras as senhoras mais idosas, enquanto fazíamos ginástica, no trabalho de voluntariado que tive.

"Num papel branco é que se desenha, num papel já desenhado há menos oportunidade de desenhar"

E realizou o sonho de servir num bar?

Não. Infelizmente. Não sei o que me deu, pus na cabeça que ia trabalhar num bar num miradouro que eu ia antes com os meus amigos — “quando voltar vou servir às mesas ali durante uns tempos” — e fiquei furiosa porque não me deram trabalho. Não estavam a precisar [risos]… E por que quis isto? Porque queria continuar a conhecer pessoas novas todos os dias. Acho que foi isso: continuar a falar inglês e perguntar a nacionalidade deles, o que faziam, “quem és?”… E depois alguém perguntar quem sou. Foi a pergunta que mais ouvi na viagem. Foi isso que me fez conhecer muito, muito a mim própria.

Ao principio era muito imediato. “Sou a Carmo, tenho 23 anos, estudei marketing, gosto de cantar, a minha mãe canta”. Todos os dias ouvia a mesma pergunta e, às tantas, começas a pensar “quem é que eu sou?”. Eu não tinha a certeza do fado e se queria cantar fado. [Antes] Senti uma repressão ao fado por pessoas que me rodeavam, diziam que era uma coisa antiquada, velha e chata. Depois, ver pessoas, durante a viagem, fascinadas com o facto de eu cantar deu-me confiança. Isso fez-me apaixonar outra vez pela pessoa que eu era e pela pessoa em que me estava a tornar. Tive sorte de nunca me ter faltado nada também. Há pessoas que buscam a felicidade e que partiram de um ponto muito mais escasso em termos de condições. Num papel branco é que se desenha, num papel já desenhado há menos oportunidade de desenhar.

De que fala o álbum?

De mim, fala de questões que me pergunto muitas vezes e de conclusões. Algumas delas escrevi, mas também há reflexões de outros poetas e génios, como Fernando Pessoa. Eu sou fascinada por Fernando Pessoa por todas as razões óbvias, mas há uma delas que me fascina ainda mais: ele pondera momentos que são quase parados. Neste caso, na música “Na Ribeira Deste Rio”, Pessoa pensa sobre a vida e sobre a ribeira que passa na vida dele e o facto de essa ribeira estar lá para que ele não note que ela passa, mas simplesmente para que faça passar o tempo. Esta música já tinha sido gravada antes pelo Paulo de Bragança. O tema foi composto por Mário Pacheco e tinha sido escolhido para o último disco da Amália Rodrigues, mas ela entretanto morreu.

“Canto” fala ainda de transformação e sobre tudo aquilo que passa pela nossa vida e nos transforma. A chuva, as gotas separadas que se dissolvem no mar, tornando-o diferente. Ele parece igual, mas não é. Tudo se transforma, tudo se renova. Somos influenciados por tudo o que há à nossa volta. Outro fado que escrevi, o “Andorinha”, é a reflexão de alguém que pergunta porque é que se está sempre atrás da primavera. Talvez esteja certo: às vezes é na memoria daquilo que se viveu de bom, na memoria das flores, na primavera da vida que encontramos forças para nos renovarmos e para darmos a volta a momentos difíceis. Talvez não concorde com o “nunca voltes ao lugar onde foste feliz” de Carlos Tê, porque é no lugar onde fomos felizes que nos vamos voltar a encontrar

Caetano Veloso participou na “Sol, Eu e Tu”. Como é ter alguém deste gabarito a escrever para si?

Ele não escreveu especificamente para mim. Ele deu-me uma música inédita. César Mendes, um dos compositores dessa canção, que estava em casa da Marisa Monte quando estávamos a escolher a canção para incluir no repertório, mostrou-me a música e disse: “olha a música que fiz com o filho do Caetano Veloso”. E perguntou se eu gostava e piscou-me o olho. Voltei para casa, a matutar. Decidi contactá-lo: “Caetano, dê-me a canção. Eu sei que é a sua primeira parceria com o seu filho, mas é tão bonita e eu queria inclui-la no meu disco”. Ele respondeu: “Com todo o prazer, a música é sua. Fique com a canção.”

Cantar fado é estar num colete-de-forças ou há espaço para inovar e criar?

Sabes, a última frase que me saiu numa entrevista foi gira: o fado não me prende, o fado liberta-me. A verdade é essa, o fado levou-me ao mundo. Foi a cantar em casas de fado que ganhei dinheiro para fazer a volta ao mundo. De repente, foi o mundo que me trouxe ao fado. Foi depois dessa busca enorme que eu me conheci melhor, que descobri que o fado podia ser a minha vida e que era a minha vocação. Como interprete sou livre. Eu já sabia que o era, mas deu-me ainda mais confiança para cantar aquilo que gosto e aquilo que sou. Não pretendo mudar o fado. O fado é maior do que eu, e maior do que os fadistas. Sinto-me completamente livre.

"O fado levou-me ao mundo. Foi a cantar em casas de fado que ganhei dinheiro para fazer a volta ao mundo. De repente, foi o mundo que me trouxe ao fado"

Em 2012, quando cantou para a então princesa Letizia em Madrid, o “El Mundo” referiu-se a si como “mitica cantante“. Significa algo para si?

É sempre bom ouvir elogios, fazem-nos pensar. É entre as críticas boas e más que temos de nos posicionar. E não levá-las demasiado a sério, como uma bandeira, como se fosse uma mitica cantante, mas ficar orgulhosa por ser assim considerada e pensar que talvez esteja a ir no caminho certo. É bom ponderar e analisar para ficar o mais perto possível da realidade.

E cantar para a realeza como foi?

Desde que a realeza goste do que estou a cantar, é maravilhoso. A agora rainha Letizia foi uma pessoa que mostrou um grande apreço por aquilo que eu faço, ao ir assistir a um concerto em Madrid. Gosta de fado, disse que começou a gostar ainda mais. Isso deixou-me orgulhosa. Tive a oportunidade de a conhecer. É muito querida, simpática e carinhosa.

Foi fotografada por Bryan Adams. Que tal a experiência?

Foi uma experiência boa. Foi um convite inusitado, assim de repente o Bryan Adams… Quando me convidou foi muito bem aceite. Não sabia que ia ter a repercussão que teve. Gostei de me ver, houve a conotação de que agora as fadistas são muito sensuais. Disseram-me: “queremos retratar a tua personalidade e achamos que reside no rosto; vai ser uma foto de rosto”. Fiquei lisonjeada. Acho que a fotografia foi marcante e ficou muito bonita. Só depois percebi que as fadistas são tão sensuais…

"Chorei quando o Freddie Mercury morreu. Não me perguntes porquê, mas foi sincero. Achei que nunca mais o ia ouvir na vida..."

O que anda a ouvir no carro?
Não tenho carro. Vendi… Nunca estou cá. E para estar a pagar seguro e manutenção decidi que mais valia vender o carro.

Ok. E como se desloca?

A pé e com boleias…

E o que toca no iPhone?

Tem de tudo um pouco. Agora estou a ouvir Ravi Shankar. Também gosto muito de música espanhola. Oiço imenso fado. Gosto de Queen, estão sempre presentes e a dar-me novidades. É a maior banda de sempre. É a minha banda preferida e nunca deixa de ser por mais coisas que oiça. Chorei quando o Freddie Mercury morreu. Não me perguntes porquê, mas foi sincero. Achei que nunca mais o ia ouvir na vida…

Gosto imenso de Maria Callas. A música clássica relaxa-me imenso. Não gosto de ouvir música de fundo, tudo o que é ruído incomoda-me imenso. Não é que a música não crie bom ambiente nos lugares, mas quando há música eu paro para ouvir. Às vezes gosto mais do silêncio.

Carminho, fado, fadista,

© André Correia

Faz desporto?

Tento. Desporto mental: sudokus, xadrez [gargalhada]. Estou a brincar. Tento correr e ir ao ginásio. É importante para cantar, ter fôlego e sustento na caixa torácica. É importante ter musculatura e resistência. A vida na estrada é muito desgastante — dorme-se mal, come-se mal. Eu devia fazer mais exercício. Fiz ginástica rítmica na quarta classe, mas era a pior da turma… Há sempre aqueles traumas de infância, como ser a última a ser escolhida no andebol. Acreditem, não vão ser assim para sempre [disse, com uma voz convicta, diretamente para o gravador, como quem faz um apelo às crianças que são escolhidas em último lugar nas aulas de educação física].

Qual foi o melhor conselho que lhe deram? Ou o último…

Foi um taxista que apanhei ontem [domingo, 9 de novembro]. Adorei-o. Estava a chover e entrei no táxi enquanto outro cliente ia sair, mas teve de ir levantar dinheiro. Depois teve de ir ao escritório buscar o dinheiro. O taxista, com muita paciência, muito querido, sem desconfiar, disse “sim senhor, vamos lá”. O homem só tinha cinco euros e a conta era 5,90. O taxista disse que estava bem assim e desabafou: “Eu já tinha parado o taxímetro há muito tempo, e já me deram um calote de três euros hoje. Dizem sempre que não têm dinheiro que chegue, mas que se pode fazer? Há que aproveitar o melhor da vida.”

Depois veio o tal conselho. “O grande erro da minha vida foi ter deixado de gostar de mim. Apaixonei-me, gostei muito mais da outra pessoa do que de mim. Essa pessoa, de repente, deixou-me e eu deixei de gostar de mim. Dei por mim e perdi tudo o que tinha”. Agora eu: as pessoas não devem deixar de gostar delas próprias. Estar feliz é o primeiro passo para fazer felizes os outros. É sempre nesta ótica do outro. Aquele taxista era mesmo boa pessoa…

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