Calma, há mais. O Travis Bickle, do Taxi Driver, tem uma série de cenas do arco da velha, capazes de nos meter em sentido. Veja lá estas aqui, ò:

“Loneliness has followed me my whole life, everywhere. In bars, in cars, sidewalks, stores, everywhere. There’s no escape. I’m God’s lonely man”

“I got some bad ideas in my head”

“Thank God for the rain to wash the trash off the sidewalk”

Pronto, já chega. Como o Taxi Driver faz 40 anos em Portugal daqui a duas semanas, resolvemos entrevistar um taxista da bola. Como? Um antigo jogador, agora taxista. A primeira ideia é Figueiredo, o grande, enorme Altafini de Cernache. Só que o homem não atende. Vamos para o plano bê. Que é mais agá. De Heredia, emprestado pelo Barcelona ao Porto, agora taxista em Córdoba, na Argentina. Como é que é? Assim mesmo, Juan Carlos Heredia é taxista. Ou é a questão da saída do Barça para o FCP a razão do espanto? Seja como for, Heredia tem 64 anos. E faz uma viagem connosco.

Boa tarde Heredia, tudo bem?
Tudo bem. Sol e boa disposição é o que se quer.

Ligo de Portugal.
Que lindo, obrigado pela chamada. Queres saber o quê?

Como é que um jogador sai do Barça para o FC Porto nos anos 70?
A história merece ser contada, de facto. O Barcelona, então treinado por Rinus Michels [holandês de cara fechada, campeão europeu de seleções em 1988], contratou-me no Verão de 1972, mas a federação nunca deu o sim à minha transferência. Primeiro deram a entender que sim, mas depois boicotaram insistentemente a minha inscrição. Fui vítima de um complot. Andei meio ano a treinar-me em Camp Nou e nem joguei um minuto que fosse até Janeiro.

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Altura em que aparece o Porto?
Exatamente. Em setembro, calhou o Porto jogar com o Barcelona na primeira eliminatória da Taça UEFA [duas vitórias portistas: 3-1 nas Antas, 1-0 em Camp Nou] e cruzei-me com o [Fernando] Riera, treinador do Porto. Ele já tinha treinado na Argentina, no Boca Juniors, e viu-me a jogar no Rosario Central. Quando me viu ali no Barcelona sem jogar perguntou-me o que se passava e eu contei-lhe tudo. Ele mostrou-se interessado na evolução da minha situação e proporcionou-se o empréstimo por meio ano.

De quando?
De janeiro a junho 1973. Embarquei no dia 2 de janeiro. No voo das 11h15 da manhã. No aeroporto de Barcelona, só estava a minha família: a minha mulher, a minha mãe e o meu cunhado. Nenhum dirigente do Barça. E só dois jornalistas. A viagem foi Barcelona-Lisboa-Nova Iorque. Na escala em Lisboa, apanhei um comboio para o Porto.

No Porto, foi chegar, ver e vencer?
Ainda demorei uns tempos. Fui operado a uma apendicite aguda.

Uyyyyy.
Depois fiquei engripado e de cama.

Então?
Só me estreei no início de Fevereiro, com o Das Antas [os argentinos dizem assim] cheio. Venderam-se 44 mil bilhetes e havia uma grande expectativa à minha volta. Ainda por cima o adversário era o Manchester United, que já não estava tão bem como nos anos 60, mas sempre era o Manchester United, treinado por um escocês que já treinara o FC Porto [Tommy Docherty]. Lembro-me perfeitamente da expectativa dos adeptos e dos treinos para emagrecer.

Como?
Com a falta de ritmo de jogo, a operação à apendicite e a gripe, engordei três quilos.

Depois ainda há o fator comida.
Nem me fales, por favoooooor. As tripas. Aquilo é o manjar dos deuses. E as francesinhas, bruuuuu [o som ao telemóvel é encantador] de comer e chorar por mais. Maravilhosas, fascinantes. Há mais, muito mais.

Conte.
O Café Velasquez, nas Antas, um habitual ponto de encontro entre o pessoal do futebol. A Confeitaria Petúlia, com aqueles bolos, aquelas torradas, aquele cheirinho. Que cidade boa para se viver.

E comer, estou a ver.
Eheheheheh, isso também. As tascas, não é assim?

Tascas, isso mesmo.
É do melhor que há. Quanto mais pequenas, melhores.

Então?
Comida com sabor, com identidade. Quando as pessoas constroem o negócio e assumem-no em absoluto, é o mais inteligente. Seja comida, bebida, roupa, táxis. Quando há compromisso, tudo funciona a nosso favor. No negócio das tascas, é assim mesmo: se o dono meter mãos à obra, literalmente, a comida ganha personalidade, identidade própria.

Falávamos da estreia.
Com o United, pois é.

Acabou quantos?
Zero-zero. Fiz quatro remates à baliza antes de ser substituído pelo Oliveira.

E o peso?
Eu e o Riera combinámos que o melhor era baixar para os 82 quilos. E assim foi. Eu só queria jogar, ganhar, marcar golos se possível e voltar ao Barcelona para me impor numa equipa de luxo como o Barça.

Conseguiu?
O início foi tremido. Estreei-me oficialmente em Março, em Guimarães. Empatámos [1-1] e fui expulso, juntamente com um outro da equipa deles [José Carlos]. Na jornada seguinte, já em Abril, porque entretanto houve a Taça de Portugal e limpei aí o jogo de suspensão, recebemos o Benfica e fiz uma boa exibição. O 1-1 é da minha autoria e o penálti do 2-2 é sobre mim. Sabes quem jogava no Benfica? O Eusébio. Grande, enorme. Nesse jogo ele marcou-nos um golo. Um senhor golo, aliás.

Então e depois?
Calma, ainda falta dizer uma coisa importantíssima. Nessa época, o Benfica foi campeão nacional sem derrotas. Só dois empates. O primeiro deles connosco. Esse 2-2 [24.ª jornada]. É um prestígio estar na história do futebol português e do Benfica. Que honra. Se não fossemos nós, o Benfica era campeão sem qualquer ponto perdido. Tenho a certeza.

E depois?
Ainda marquei mais dois golos [um ao Montijo, para o campeonato, outro ao Beira-Mar, para a Taça] e acabou-se a época, num misto de insatisfação porque ficámos em quarto lugar e não nos qualificámos para as competições europeias da época seguinte. Ao mesmo tempo, sentia-me o príncipe dos adeptos. Todos me adoravam, paravam-me na rua, elogiavam-me, abraçavam-me. Era o centro do mundo. Além disso, fui eleito o melhor em campo nalguns jogos e os defesas queriam marcar-me individualmente.

Estava indeciso entre Porto e Barcelona?
Mais ou menos. Senti-me em casa no Porto, éramos todos amigos uns dos outros, no balneário e fora dele. Só que o Barça é o Barça. O Porto queria negociar um preço do meu passe com o Barcelona, mas o que eles pediam era muito. E o Rinus Michels dizia que contava comigo. Cheguei esperançado a Espanha, no final de Junho. Seria o segundo estrangeiro se…

Se?
Se o Cruijff não tivesse trocado o Ajax pelo Barcelona. Aí perdi novamente o comboio e fui outra vez emprestado.

Ao Porto?
Quem me dera. Ao Elche. Vivemos a época toda na zona de despromoção mas ganhámos ao Real Madrid e ao Barcelona.

Por falar no Barcelona, chegou a jogar lá?
Heeeeeeeeee, também não é caso para brincar comigo! Ao fim de três épocas, estreei-me finalmente no Barça.

Eh lá, como?
Só com dupla nacionalidade. Tive de pedir os papéis e a Argentina vivia um momento político delicadíssimo, pelo que as autoridades competentes tinham mais que fazer do que andar atrás de uns papéis e mandarem-mos pelo correio. Mesmo assim, em Outubro, resolvi o problema dos papéis, pedi a dupla nacionalidade e fiz-me jogador. Até joguei na seleção espanhola umas três vezes. No Barcelona foi de 1974 a 1979. Fiz grandes jogos.

Tais como?
Lembro-me de um com o Belenenses, para a Taça UEFA 1976-77. No Restelo, 2-2. Marquei os dois golos. O primeiro de cabeça, o outro numa espantosa jogada individual. Tens de ver, a sério. Ou pergunta aí a alguém daquele tempo. Peguei na bola quase na linha de fundo, driblei três defesas, levei-os à minha frente.

Eheheheheh
A sério, amigo. Entrei na área, fingi que ia cruzar e meti a bola na baliza. Fui eleito o melhor em campo pela imprensa portuguesa e espanhola. O Cruijff deu-me os parabéns, assim como o treinador Rinus Michels. Estava eufórico até me lembro de ter dito aos jornalistas que a eliminatória estava ganha [em Camp Nou, o Belenenses dá luta e só perde 3-2].

E maus momentos?
Alguns. Contraí hepatite, por exemplo. Isso foi antes de me estrear pelo Barcelona. Nessas quatro épocas, às vezes, passava-me da cabeça. Em Santander, fui expulso na segunda parte e originei um circo no El Sardinero [nome do estádio]. O Barcelona multou-me em 50 mil pesetas, uma enormidade. Esperava uma multa, sim, mas não aquela quantia. Quase me esvaziou a conta bancária [risos]. Mas querem que um avançado se controle em campo? Quem me tocasse no cabelo apanhava. Mesmo que fosse o meu pai [risos]. E a caminho do balneário disse umas coisas ao Cruijff.

Tais como?
Agora já nem me lembro. Mas coisas pouco simpáticas. Insultos, pronto. Estava exaltado e ele queria acalmar-me.

E coisas bonitas?
Ganhei a Taça das Taças. Eliminámos o Anderlecht, virámos um 3-0, ganhámos nos penáltis. Que noite. São as melhores recordações, de longe.