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Para o autor da biografia proibida de Roberto Carlos não há outro rei no Brasil

Paulo César de Araújo escreveu a história de Roberto Carlos mas os livros ficaram no armazém. Nunca deixou de ouvir as canções e de adorar o rei: "Sou um dos milhões de amigos que ele desejou ter”.

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O rei é Roberto Carlos. O réu é Paulo César de Araújo, o mal-amado biógrafo. Esta relação complexa funciona como uma canção do eterno romântico de blazer branco: paixão, seguida de confronto, desilusão e, enfim, uma esperança de recomeço, por alguém que já percorreu as curvas da estrada. Paulo César de Araújo ficou famoso no Brasil ao publicar a primeira biografia de Roberto Carlos em 2007, sendo por isso ameaçado de prisão e tendo os livros apreendidos pela justiça.

Entretanto, o país entrou numa discussão sobre a censura e dez anos depois o historiador e professor prepara em casa a definitiva biografia, que deverá ser publicada no Brasil ainda este ano, pela Record. “Acredito que podíamos nos ter tornado amigos”, confessa numa conversa que teve com o Observador no Rio de Janeiro, onde vive. “O Roberto acha que sou um inimigo, mas na verdade sou um dos milhões de amigos que ele desejou ter”

A capa da edição original de “Roberto Carlos em Detalhes”, de Paulo César de Araújo

Chamar Em Detalhes (2007, Editora Planeta) de biografia “não autorizada” é um eufemismo. De tal forma o livro é “não autorizado” que qualquer loja que o tivesse na montra pagaria uma multa de 5 mil reais por dia, e o autor 500 mil pela mera circulação. “A radicalização da posição é que nos assustou”, recorda Paulo, “mas conhecendo a complexidade da personagem não posso dizer que fiquei surpreendido”.

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Para entender Roberto Carlos é necessário perceber a personagem, o romântico que começou rocker, os casacos brancos e azuis claros, as flores, o transtorno obsessivo compulsivo, as canções clássicas, o revolucionário, a prótese na perna e o vegetariano que fez anúncios a empresas que vendem carne e ao, mesmo tempo, cantou sobre a morte das baleias vestindo uma épica gabardine amarela.

https://www.youtube.com/watch?v=Fn9lIHw0_7Q

Louco por você

Roberto Carlos Braga nasceu a 19 de abril de 1941 em Espírito Santo, a 900 quilómetros de Vitória da Conquista, no sul da Baía, onde Paulo ouviu pela primeira vez o tom anasalado e gritante do rei do “iê-iê-iê”. “Os ídolos anteriores, eram associados a géneros brasileiros”, explica. “No país do samba e da bossa nova, e sem tocar música brasileira, conseguiu ser o artista mais popular da nossa história”. A boa nova era o rock’n’roll e Roberto o grande profeta, liderando a Jovem Guarda com o parceiro de composição Erasmo Carlos. Segundo a lenda, os Beatles foram número um em todos os países do mundo, menos Brasil, onde já reinava o deus sol.

A televisão, rádio, cinema e até as tribos indígenas ajoelharam-se, com tantos outros copiando passo a passo os gestos e a voz do ex-discípulo de João Gilberto. “Nesse momento, a música brasileira rachou e pela força da obra influenciou todos os movimentos pop seguintes, como a Tropicália”, diz Paulo. A fase de ouro é ali entre 65 e 71, com a obra-prima deste último ano cedendo progressivamente espaço para o Roberto romântico, dividindo eternamente o povo brasileiro: “eu gosto da Jovem Guarda” ou “eu sei a letra de ‘Como é Grande o Meu Amor Por Você’ e posso cantá-la agora”. “Ele sempre foi um romântico, quando começou cantava boleros e bossa nova, só que fracassou”, revela o biógrafo. “No rock encontrou um veículo, mas mal teve oportunidade fez a transição para o que sempre quis ser: o romântico.”

O autor passou a marcar reuniões com os empresários de Roberto Carlos, mostrando resultados da pesquisa e pedindo qualquer sinal real de aprovação. “E em todas essas centenas de tentativas, nunca me disseram que ele não queria falar, somente que tinha compromisso”.

Aos 16 anos, Paulo César de Araújo trocou a Baía por São Paulo e depois o Rio de Janeiro, onde, conforme a tradição, se apaixonou no carnaval. Obcecado pela música que passava nas rádios baianas, decidiu ingenuamente pesquisar e entrevistar todos os seus ídolos cariocas, sem a consciência que existia uma divisão entre o intelectualismo de Tom Jobim e o romantismo de Roberto. Percorreu as bibliotecas, museus, editoras, gravadoras, arquivos de rádio, televisão e procurou as personagens que pudessem revelar qualquer coisa sobre os músicos que estavam sempre presentes, mas tinham pouco mais que o nome como informação biográfica. “Rapidamente constatei que não havia um único livro sobre cantores bregas como Odair José e Paulo Sérgio. Quis investigar porquê essa exclusão? Porquê o silêncio?”.

Paulo César de Araújo

O que é “brega” é foleiro e a pesquisa inédita sobre os foleiros levou ao primeiro livro Eu Não Sou Cachorro, Não (2002, Record), o passo fundamental para ganhar coragem e atacar o monstro sagrado. “Não existia nada sobre Roberto Carlos, o meu grande esforço foi tentar explicar o fenómeno”, recordou sobre os anos de pesquisa. Quando quis falar com alguém bastava puxar a lista telefónica, fosse ele um Caetano ou Paulinho da Viola, que imediatamente atendiam dispostos o telefone. “Mas o Roberto era o único músico nos anos 90 que já tinha uma assessoria”, explica, “e a assessoria sempre me garantiu que estava em viagem ou gravação”.

Chegando a esta altura do texto, já entendeu que Paulo não é de desistir facilmente, e o autor passou a marcar reuniões com os empresários do cantor, mostrando resultados da pesquisa e pedindo qualquer sinal real de aprovação. “E em todas essas centenas de tentativas, nunca me disseram que ele não queria falar, somente que tinha compromisso”. Sem conseguir conhecer o rei, Paulo decidiu focar-se onde Midas tocou: as canções.

Esse momento deixou de ser lindo

Caetano ordenou em “Baby” que precisamos de “ouvir aquela canção do Roberto”, mas que canção é essa? “É um tipo de canção singular no universo brasileiro”, explica. “Ele não faz samba, nem forró, nem sertanejo, nem MPB, faz Roberto Carlos.” É o tom quase falado de João Gilberto elevado ao extremo, com a emoção carregada em cada sílaba, que salta com a facilidade de quem viveu esse momento. “São histórias autobiográficas para sentir com clareza e ele na sua simplicidade consegue não ser sofisticado, nem popularesco, atingindo o rico, pobre, intelectual e analfabeto.”

“Lembro-me que quando mandei o livro para a gráfica, pensei, 'até aqui ele não me ajudou, espero que não me atrapalhe'”. Na passagem de ano, fez o mesmo que qualquer brasileiro, assistiu ao tradicional especial na TV Globo de Roberto Carlos e brindou ao seu ídolo, em agradecimento pela inspiração que resultou na biografia que escreveu.

Hoje, dez anos depois, o professor e historiador continua a emocionar-se quando recorda o dia 17 de janeiro de 2007. Em Detalhes, lançado algumas semanas antes, foi um sucesso de vendas e de críticas, sem qualquer participação ou entrevista do cantor, que não quis receber Paulo durante a pesquisa. “Lembro-me que quando mandei o livro para a gráfica, pensei, ‘até aqui ele não me ajudou, espero que não me atrapalhe’”. Na passagem de ano, fez o mesmo que qualquer brasileiro, assistiu ao tradicional especial na TV Globo de Roberto Carlos e brindou ao seu ídolo, em agradecimento pela inspiração que resultou na biografia que escreveu.

O livro pede emprestado o título à primeira música do álbum do busto, de 71, onde Roberto escreveu: “detalhes tão pequenos de nós dois / são coisas muito grandes p’ra esquecer / e a toda hora vão estar presentes / você vai ver”.

Podia ser um presságio, pois era mesmo nos detalhes que morava o diabo, com Roberto a soltar uma comitiva de advogados numa fúria inaudita, apresentando duas ações legais contra o biógrafo. A ação civil exigia 500 mil reais por dia ao autor, 5 mil reais aos livreiros e a apreensão de todas as obras, que hoje continuam escondidas num armazém. A ação criminal representaria a soberba que virou Roberto contra a opinião pública, pedindo a prisão de Paulo por um tempo superior a dois anos. Numa única entrevista, Roberto anunciou que não leu, mas não gostou. Onde estaria o problema? Nos relatos sobre o acidente que lhe ceifou a perna, nos casamentos, nos negócios? A resposta seria mais tenebrosa e o rei revelou finalmente sua face absolutista. “Ele não questionou o livro. Ele disse ‘é a minha história, meu património e só eu posso escrever’”, conta sobre a acusação. “Sabendo do TOC [Transtorno Obsessivo Compulsivo] e do firme controle da carreira, para ele foi como se o chão tivesse saído debaixo dos pés.” O público reagiu em total apoio do biógrafo, e Roberto, num extraordinário contra-ataque, chamou a artilharia pesada.

É proibido proibir mas não muito

Os telejornais abriram todos com a mesma notícia. Os súbditos Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan, Marisa Monte, Jorge Ben e Erasmo Carlos juntaram-se em solidariedade, exigindo uma lei que proibisse o lançamento de biografias não autorizadas. Ninguém conseguia explicar como o pequeno livro de Paulo conseguiu unir em repúdio toda música popular brasileira, desde o esquerdista Chico ao Caetano de “É Proibido Proibir”.

“Foi uma grande vitória e sem o meu livro não tinha acontecido esse julgamento, são as ironias da história, uma atitude radical do Roberto levou a uma mudança de lei no Brasil”. Desde 2015, no Brasil não é necessária a aprovação do biografado para que a sua história seja publicada em livro.

“Aí engajei-me nessa luta”, conta, “porque a questão deixou de ser o livro, mas o direito de escrever no Brasil”. Sob os olhos de todos, Paulo conheceu pela primeira vez o seu ídolo, mas de uma forma que foi contra todas as ideias que habitualmente formamos para tal momento. “Quando fiquei frente a frente com Roberto foi das coisas mais tristes que vivi”, confessa abatido. Sobre esse encontro, o julgamento, e como a vida do cantor e biógrafo se entrelaçaram, Paulo escreveu o livro O Réu e o Rei (2014, Companhia das Letras).

Um ano depois, o caso chegou ao Supremo Tribunal Federal, a instância judicial mais alta do país, que decidiu por nove votos a zero a venda livre e legal de qualquer biografia não autorizada, levando o próprio Caetano a assumir mea culpa publicamente. Paulo Coelho sugeriu que foram todos manipulados pelo rei, entregues às feras pelo domador sempre escondido na sua posição apolítica. “Foi uma grande vitória e sem o meu livro não tinha acontecido esse julgamento, são as ironias da história, uma atitude radical do Roberto levou a uma mudança de lei no Brasil”. Desde 2015, no Brasil não é necessária a aprovação do biografado para que a sua história seja publicada em livro.

“O Réu e o Rei: a minha história com Roberto Carlos”, de Paulo César de Araújo

Hoje, encontrar Em Detalhes requer alguma sorte e a capacidade de usar um chapéu de Indiana Jones para enfrentar os esforçados alfarrabistas. O livro pode atingir preços picantes e é invariavelmente o Moby Dick que todos os colecionadores esperam encontrar. “Em tese, ele pode ser publicado novamente”, clarifica, “a única pendência é o acordo que eu e Roberto fizemos na justiça”. Acontece que a editora já perdeu os direitos de Em Detalhes e por isso a sua parte no acordo deixou de ter validade. Após o julgamento, a editora comprometeu-se a entregar os 11 mil livros no armazém do cantor, nunca mais publicar outra edição e, por sua vez, não pagar qualquer indemnização. Todavia, sem os direitos do livro, qualquer editora pode voltar a colocar a obra no mercado. Neste momento, os 11 mil livros continuam a apodrecer no mesmo armazém, mas em Portugal a história pode ser outra. “Curiosamente existe em Portugal”, anuncia o autor, perplexo, “mas eu não recebo direitos autorais desde 2007”. Está mesmo lá o livro no site da Bulhosa, na sua primeira edição, passados dez anos da proibição. Mas em breve haverá uma nova biografia, revista e aumentada, que deve chegar às lojas ainda este ano.

Que tudo isso vá para o inferno

No dia em que nos encontramos, Roberto celebra os 76 anos em plena MEO Arena, em Lisboa. Paulo resplandece a ouvir os relatos do concerto e confessa que não vê o rei em palco desde o ano da proibição. “O mais emocionante é observar as pessoas que vão ao seu primeiro show, porque existe um ritual de começo, que ele cultiva, o mise en scène do ídolo, o suspense, a luz apagada e o início dos choros”. No Rio de Janeiro, Paulo César de Araújo vai lançar em breve pela Record a sua definitiva obra. Tanto Paulo como a editora garantem não estar apreensivos com o lançamento, até porque a decisão do Supremo foi suficiente para assegurar que os advogados não vão entrar novamente em ação.

Não existe outro rei para encantar o Brasil: “Não existe e nunca vai existir, o Roberto foi o único que disse que era terrível e mandou todo mundo para o inferno”.

O escritor ainda garante que continua a ouvir Roberto com a mesma emoção e guarda o álbum de 71 com especial carinho. Basta-lhe lembrar uma canção de Roberto Carlos que ele começa a cantar de sorriso nos lábios. “Nestes livros, tive de separar a coisa passional”, garante. “Eu sou um historiador e o Roberto Carlos é meu objeto de estudo, não fiz este livro para agradar o cantor mais popular do Brasil.” Quem não agradou mesmo foi o setor intelectual, crítico e as classes mais altas do país, que já tinham um desdém sobre Roberto Carlos desde os tempos em que o cantor decidiu ser apolítico durante a ditadura militar. O episódio da Friboi não ajudou, com um dos anúncios mais caricatos da história do Brasil, só um pouco atrás do extraordinário trabalho da Panificadora Alfa (veja, vai alegrar o seu dia).

https://www.youtube.com/watch?v=q4QXJPk12l8

“Ele nunca foi unânime, mas o episódio das biografias afastou ainda mais pessoas, apesar de grande parte do país ainda ter a consciência que é dos nossos músicos mais relevantes.” Este ano, Paulo vai finalmente fechar a “trilogia do rei”, como chama ao seu árduo percurso literário.

E depois? Depois ainda não sabe, ainda não há planos. Até porque não existe outro rei para encantar o Brasil: “Não existe e nunca vai existir, o Roberto foi o único que disse que era terrível e mandou todo mundo para o inferno.”

Roberto Carlos atua dias 24 e 25 de abril no Pavilhão Multiusos de Gondomar

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