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-/AFP/Getty Images

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Quando os Jogos foram estranhos e quase bizarros

Ir às ruas de Paris buscar um timoneiro com 30 quilos para ganhar o ouro no remo. Ou correr quilómetros no trânsito para chegar a tempo da final dos 1.500m. Há histórias estranhas nos Jogos Olímpicos.

Dois remadores e um miúdo caçado na rua (1900)

O remo é tramado. Não é só ser bom na remada, perfeito no ângulo em que se mergulha a pá do remo na água, se faz força para puxar a água e dar nós de velocidade ao barco. Ser bom no remo é do arco-da-velha por haver mais do que um tipo a fazer de motor. Ter três homens lá dentro, remos nas mãos, com a ideia na cabeça e os músculos no corpo para serem os primeiros a percorrer uma certa distância implica certas coisas. Não é só saberem remar, terem a técnica de remada mecanizada e a sincronia de movimentos afinada para conseguirem ser os mais rápidos a deslizar sobre a água. Os quilos interessam.

François Brand e Roelof Klein olharam bem para o terceiro holandês que tinham na equipa, puseram-se a matutar. Despistaram-lhe quilos a mais, culparam Hermanus Brockmann, o timoneiro, por ter 60 quilos no corpo. Acharam peso a mais. Não lhe perdoaram o facto de se terem qualificado para a final da prova de remo em segundo lugar. Queriam mais, pretendiam ser os melhores, e a ambição disse-lhes que tinham de emagrecer. Por isso correram com Brockmann, que era médico de profissão.

Os dois holandeses livraram-se de um problema para arranjarem outro. Olharam para as outras equipas e repararam como, em todas, o elemento que guiava o barco era leve. Quase todos tinham rapazes, crianças quase, a servirem de timoneiros com metade do peso que Hermanus Brockmann acusava na balança. Precisavam de arranjar alguém que fosse uma pluma no barco e os soubesse guiar até à vitória. Pessoas que percebam de remo e sejam leves não caem das árvores, mas podia ser que espreitassem nas ruas.

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Brand e Klein foram passear por Paris e, como esta história é de 1900, os tempos eram outros — em tudo. Nesta segunda edição dos Jogos Olímpicos a França tinha sete barcos a competirem na prova de barcos a remo com dois remadores e um timoneiro, enquanto a Holanda e a Bélgica apenas tinham um. E, pelos vistos, as regras do Comité Olímpico Internacional não obrigavam a que cada barco só tivesse uma nacionalidade, porque François e Roelof encontraram um rapazote no meio das ruas. Dos bons.

Pegaram nele, puseram-no no barco e, na final, remaram até ao ouro. Diz-se que o miúdo tinha entre os sete e os dez anos, que era francês e até tirou umas fotografias com os dois holandeses, nas tertúlias da vitória. E dizem-se mais umas quantas coisas sem sabermos nada ao certo — como o rumor de que ele pesava à volta dos 30 quilos — porque, até hoje, ninguém conhece o nome do miúdo. Nos registos de medalhas do comité olímpico, o terceiro elemento do barco holandês surge como “timoneiro desconhecido”. A única certeza que há é que era leve o suficiente para os holandeses emagrecerem até à vitória.

Foto: Getty Images

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Chegar a 20 minutos da corrida e ganhar com pedras na vesícula (1968)

Ficou na cama, resolveu dormir umas horas mais. Não era ronha, foi descanso. Com ou sem despertador, acordou tarde. O relógio estava a mais ou menos 60 minutos da hora a que a corrida ia arrancar. Ele apressou-se como pôde. Despachou o levantar, o vestir e o lavar a cara para ziguezaguear entre os corredores da Aldeia Olímpica. Chegou lá fora e enfiou-se no autocarro que lhe daria boleia até ao estádio olímpico. O tempo urgia e o caos e trânsito que enchiam a Cidade do México corriam contra ele.

Carros presos em filas mais indianas que a Índia deixaram-no a desesperar. Já se tinha dado ao risco de perder a corrida, não podia arriscar-se a, de facto, perdê-la. Por isso abriu a porta e saiu do autocarro, decidiu correr. Estava, mais ou menos, a três quilómetros do estádio. Teve que correr e puxar pelas pernas para elas lhe levarem o corpo e o equipamento que carregava até ao estádio. Chegou atrasado na prudência, mas a tempo de se registar na prova, a 20 minutos do arranque da corrida dos 1.500 metros. Ufa.

Ouvido o disparo para por toda a gente a correr na pista olímpica, ele fartou-se de correr e fez quem corria atrás fartar-se dele. Liderou o pelotão desde o início e, a meio, já descolara de toda a gente. Galgou metros tão rápido que parecia batota, mais ainda quando, ao cruzar a meta, tinha uma vantagem de cerca de 20 metros para os perseguidores. Correu quilómetro e meio em 3:34.9, o segundo melhor tempo de sempre e um recorde olímpico que perduraria até 1984. E mais, porque a medalha de prata caiu no pescoço de Jim Ryun, um norte-americano que não perdia uma corrida há três anos.

E uma história mais ou menos passa a chegar para arregalar olho quando se conta o resto que aconteceu a Kipchoge Keino. Porque este queniano, de sorriso fácil e esforço sem reservas, chegou aos Jogos Olímpicos do México com pedras na vesícula biliar, uma condição que, segundo a internet, causa dores como facas a espetarem-se na barriga. Os médicos disseram a Keino que participar nos Jogos causar-lhe danos de saúde graves e, no extremo, até a morte. As dores não o largaram durante a competição e fizeram-no tombar antes de tocar na tal medalha de ouro.

O corpo pôs-lhe travões quando liderava a corrida dos 10.000 metros. A três voltas do fim, as dores contorciam-no e obrigaram-no a sair de pista. Cambaleou e, saído da pista, esteve uns segundos ajoelhado, quase imóvel, a lutar contra ele próprio. As regras dizem que colocar um pé fora do tartan equivale a ser eliminado da prova, mas Keino insistiu em regressar e terminar a prova. Assim não foi o primeiro queniano a conquistar uma medalha olímpica, como Naftali Temu, o compatriota que venceu essa corrida. Mas, dias volvidos, acabou com prata à volta do pescoço nos 5.000 metros, ficando a apenas um quinto de segundo do ouro. Uma coisa má seguida de uma boa e ambas com o horrível de, aos 28 anos, correr com as dores de pedras na vesícula.

Kipchoge Keino chegou a dizer que, em miúdo, corria à volta de 25 quilómetros por dia para ir e voltar da escola, no Quénia, com um almoço em casa pelo meio. Já crescido, tornou-se um instrutor físico da polícia, antes de seguir uma carreira como atleta. Em 1968, quando ganhou o ouro nos 1.500 metros, a provas de grandes distâncias ainda estavam longe de ser dominados por africanos. Keino inspirou várias gerações de atletas quenianos e, hoje, é o presidente do comité olímpico do seu país.

Foto: Getty Images

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Lutar e ser roubado, literalmente (1988)

Roy Jones não queria acreditar. Assim que o combate terminou e as formalidades foram despachadas, procurou um tradutor. Foi rápido. Encontrou-o e, em bom inglês traduzido para sul-coreano, perguntou a Park Si-hun se ele achava que tinha vencido e sido o melhor dentro do ringue. “Não”, respondeu o adversário asiático, envergonhado, abanando a cabeça de um lado ao outro. Roy, mesmo indignado, tão furioso quanto incrédulo, diz ter ficado tranquilo: “Se me disserem a verdade, tudo bem”.

Mas não podia estar. Roy Jones acabara de perder a final da competição de boxe nos Jogos Olímpicos de Seul, em 1988. Ou melhor, de ser roubado. Porque aquele combate foi uma espécie de espelho que refletiu o que acontecera nas quatro anteriores vezes que o norte-americano de 19 anos (e amador) pisou o ringue. Foi um destruidor. Tinha uma leveza nos pés e uma pujança no gancho de esquerda que o livraram de perder qualquer round até à final. Era o melhor lutador que estava na Coreia do Sul, ponto final, e sem parágrafo — porque no último combate coincidiu com Park Si-hun.

O lutador sul-coreano chegara ali com um reboque de dúvidas. Era fraco, parco em técnica e com demasiadas coisas a menos para justificar uma medalha. A final demonstrou-o. Park acertou 32 murros em Roy, contra os 86 que o americano lhe acertou. Por duas vezes o asiático foi ao tapete e apenas se levantou sobre os dois pés quando, de um a dez, a contagem do árbitro ia no oito. Park aguentou-se, conseguiu sobreviver aos três rounds. Mas a decisão só podia ser uma.

Os dois lutadores foram ter com Aldo Leoni, o árbitro, ao centro do ringue. Ele segurou numa das mãos de cada um e, incrédulo, mas robótico, ergueu a de Park Si-hun. Vencedor. Mal o fez, conta o The Guardian, terá sussurrado ao ouvido de Roy Jones: “Não acredito que te estejam a fazer isto”. Nem um sorriso se nota na cara do lutador sul-coreano, ele sabe que aquilo está errado. Os cinco juízes atribuíram uma pontuação de 3-2 a favor do sul-coreano. Os números diziam que o combate fora renhido, os murros mostraram a injustiça que foi para Jones.

Mesmo com um pavilhão bastante caseiro, os búuus e os assobios ouviram-se com fartura no momento em que Park Si-hun subiu ao pódio. Anos depois, o Comité Olímpico Internacional suspendeu os três juízes que deram a vitória ao sul-coreano, provados que ficaram os subornos que aceitaram durante os Jogos — em forma de jantares e envelopes recheados com dinheiro. A medalha de ouro, porém, nunca mudou de pescoço. Roy Jones, que no ano seguinte chegou a profissional, viria a ser um dos melhores lutadores do planeta entre os meados das décadas de 90 e 2000.

Foto: Mike Powell/Allsport/Getty Images

Mike Powell/Allsport/Getty Images

Saltar ao pé-coxinho e subir ao pódio no colo do treinador (1996)

A ginástica é um mundo de perfeição. Os saltos, as rotações, o timing com que se passa de uma barra a outra. Tudo conta, o júri analisa e pontua com a minúcia de um controlador de tráfego aéreo. Os pormenores valem ouro, ou lixo, pois o mais pequeno erro ou distração podem valer uma lesão das graves. Kerri Strug sentiu-o mal aterrou da primeira tentativa de salto que fez em 1996, na prova de ginástica por equipas, em Atlanta.

A miúda de 18 anos, cara decidida, olhos carregados de querer, correu a sprintar rumo ao eixo. As rotações que deu no ar ficaram-lhe em falta e, ao aterrar, fê-lo de maneira algo desamparada. Cai para trás mal aterra. Faz cara feia, de dor, leva as mãos ao tornozelo esquerdo. Caminha para longe do colchão, volta ao início da pista a coxear e sem mostrar um dente. Está preocupada. Olha muito para o treinador, não esconde a dor, pergunta-lhe se é mesmo necessário: “Precisamos mesmo disto?”.

https://www.youtube.com/watch?v=YhGLXOV823U

O senhor de bigode responde-lhe que sim, tem mesmo de ser. Estavam no meio da final da prova coletiva, na qual poucos antecipavam ver os EUA. Ela era a última ginasta norte-americana a saltar quando faltavam ainda duas russas fazê-lo. A matemática dos números obrigava-a a insistir, um bom salto garantira o ouro. Kerri voltou à posição, tentou esquecer o tornozelo que lhe mandava estar quieta e insistiu. “Era uma miúda muito sensível, que sempre se preocupou com o que os outros pensavam dela. Não queria ser lembrada como a ginasta que falhou, mas como a que fez o melhor salto possível para tentar dar a medalha à equipa”, diria, mais tarde, o pai Strug, num documentário.

E Kerri correu e saltou e rodou e aterrou tudo quase na perfeição, erguendo os braços como os ginastas se despedem. O público tornou-se barulhento, eufórico, enquanto a rapariga de 18 anos cedia ao tornozelo, aguentando-se ao pé-coxinho em cima do colchão. O salto foi pontuado em 9,712, o suficiente para os EUA conquistarem a então primeira medalha de ouro da história na prova coletiva de ginástica. Strug subiu ao pódio segura pelos braços de Béla Károlyi, o romeno naturalizado norte-americano que, antes de a treinar, já tinha ajudado Nadia Comaneci a ser campeã olímpica.

Pouco tempo passou até Kerri se retirar da ginástica profissional, antes dos 20 anos. Chegou a ser convidada por Bill Clinton, o então presidente dos EUA, a visitar a Casa Branca. O momento olímpico permitiu-lhe viver da curta carreira e lucrar com ela, porque hoje, a cada quatro anos, por exemplo, firma parceiras com diversas marcas assim que outra edição dos Jogos Olímpicos se aproxima.

Foto: JIRO MOCHIZUKI/AFP/Getty Images

JIRO MOCHIZUKI/AFP/Getty Images

Ser puxado e atrasado por um antigo padre (2004)

É sempre com a maratona que se fecham os Jogos. Ou seja, é com sofrimento, cansaço e superação que se percorrem 42 quilómetros e se dá o nó no laço para se embrulhar cada edição da competição. Vanderlei Cordeiro de Lima já devia imaginar-se com a medalha ao pescoço, riso a ligar orelhas, no terraço do pódio, em 2004, quando já só lhe restavam sete quilómetros por correr. Estava quase.

O brasileiro estava na zona, como dizem os americanos (“in the zone“). Não necessariamente boa, mas automática, a fase de uma maratona em que o cansaço e as dores já se acumularam tanto que, quem corre, agarra um ritmo e pensa em tudo quanto é coisa boa e feliz na vida para se aguentar. É quando se tenta desligar a cabeça do corpo. Foi nessa fase que Cornelius Horan se decidiu fazer ao alcatrão, no meio de Atenas. O irlandês, meio mascarado, apareceu a correr na estrada para empurrar Vanderlei para fora dela e o manter, por uns segundos, colado aos espectadores. Ainda o irlandês não lhe tinha tocado e já a cara de pesar invadira o maratonista brasileiro.

https://www.youtube.com/watch?v=2qivwH-1HlI

Vanderlei ia com mais ou menos 40 segundos de vantagem sobre o segundo classificado. Ficou parado cerca de 20, mas estas contas não são apenas de subtrair e ficar com o resultado. O brasileiro perdeu o ritmo. Deu ainda mais fastio à cara quando recomeçou a correr, sôfrego, de rastos. Não mais conseguiu engatar a passada que o colocara a liderar a maratona. Nos quilómetros que o separaram da meta foi ultrapassado pelo italiano Stefano Baldini e o norte-americano Mebrahtom Keflezighi. O ouro e a prata fugiram-lhe.

Apenas agarrou o bronze e, com a certeza de que ficaria com uma medalha, entrou na pista do estádio olímpico com os braços abertos, baloiçando-os para imitar o voo de uma ave. Estava sorridente, radiante quase, enquanto as pessoas que estavam nas bancadas o aplaudiam e reagiam efusivamente à sua chegada à meta. O terceiro lugar foi uma vitória para o brasileiro. O resto foi uma vergonha para Cornelius Horan.

O ex-padre irlandês, proibido pela Igreja de exercer o sacerdócio, devido a motivos psicológicos, foi detido pelas autoridades gregas e, mais tarde, condenado a uma pena de prisão suspensa de 12 meses e ao pagamento de uma multa a rondar os três mil euros. Horan, sempre vestido com um traje típico irlandês, adornado com símbolos do país, já era conhecido por se intrometer em eventos desportivos. Em 2003, obrigou vários pilotos de Fórmula 1 a fintarem-no na pista de Silverstone, durante o Grande Prémio do Reino Unido, enquanto abanava uma bandeira, na qual se lia: “Leiam a Bíblia. A Bíblia tem sempre razão”.

Pouco antes dos Jogos Olímpicos de Londres, o irlandês, entrevistado pela BBC, revelou que ainda estava “muito triste” pelo que fez. “Acho que muitas pessoas pensaram que eu queria agarrá-lo para atrair atenção para mim, mas eu realmente estava tentando chamar a atenção para uma mensagem. É Bíblia que merece atenção, não Neil Horan”, disse, ao explicar que pretendia colocar-se à frente de Vanderlei, durante a maratona, para exibir um cartaz. Só que, “por várias razões”, optou por o empurrar para fora de pista — onde a intervenção de um grego chamado Polyvios Kossivas, que mais tarde foi homenageado no Brasil, com honras de Chefe de Estado, livrou o brasileiro do irlandês com ânsias de atenção.

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