Há uns meses, na assembleia da minha freguesia, de que sou membro, o executivo da junta explicava os requisitos para as crianças da freguesia acederem a atividades de férias. Lá constava a apresentação do boletim de vacinas das crianças a inscrever. Alguém, pretendendo reduzir burocracias (sempre boa ideia), sugeriu confiar nos pais, assumir que as crianças têm as vacinas em dia e dispensar a apresentação do dito boletim. Claro que tive de dar os meus dois cêntimos num dos meus assuntos de estimação. Defendi o boletim de vacinas: nem todos os pais consideram as vacinas dignas dos seus filhos e, evidentemente, as restantes crianças devem ser protegidas. Até as crianças vacinadas podem ser contagiadas de forma mais suave com certas doenças (é o caso do sarampo) e há crianças com problemas imunitários que não podem ser vacinadas de todo, apenas o efeito manada as protege (com a quase totalidade das pessoas imunizadas, os contágios não ocorrem e as doenças ficam contidas).

Sou muito prática neste caso: as crianças não vacinadas devido a pruridos naturalistas (ou hippies ou simplesmente ignorantes) dos pais não deviam ser aceites nas escolas, nas atividades de qualquer organismo público ou que receba dinheiro dos contribuintes, os pais deviam perder qualquer subsídio estatal, e por aí adiante. Sugestões que os pais que não vacinam os filhos não me levarão certamente a mal. Afinal são pessoas amantes de estilos de vida naturais. E o estado central e o estado social, se virmos bem, são realidades construídas pelos humanos. Não caem dos ramos das acácias nem crescem como cristais nas rochas. Os impostos que sustentam estes subsídios, escolas públicas, sistema nacional de saúde para tratar doenças preveníveis por vacinas? É certo que o pagamento de impostos, em formas rudimentares, apareceu cedo na história humana, mas pouco haverá mais artificial que o pagamento de impostos. Garanto que cobranças ilegítimas (mesmo quando legais) de impostos, ou fiscalidade alta e injusta, mataram mais gente ao longo dos séculos do que as vacinas.

As crianças não vacinadas, exceto por impedimento médico, devem ser, tanto quanto possível, impedidas de contagiar outras crianças. Os sobranceiros pais (que não querem injetar químicos e metais nos tão especiais rebentos) podem criar colégios de crianças e adolescentes livres de químicos, protegidos pelos anjos e pela cor das auras dos infantes, e onde sarampo, meningite e tosse convulsa contagiem livremente com a bênção da Natureza e dos elfos. Desejo-lhes todas as felicidades – longe das minhas crianças e do efeito manada. Claro que, como bem conta na primeira pessoa a autora deste texto da Slate, filha de hippies anti-vacinação, estas crianças passam boa parte da infância doentes e ingerindo medicamentos (químicos, hello!) para tratar as doenças que escolheram não prevenir. Mas este amor pelos antibióticos, e etc., não é da minha conta nem da população infantil lá de casa.

Não tenho qualquer simpatia pela causa dos pais que não vacinam os filhos. É um assunto em que até os meus amigos liberais com frequência se baralham. Toda a gente, em adulta, pode decidir não se vacinar. Não se deve obrigar um adulto que vai viajar para a Amazónia a vacinar-se contra a febre amarela. Esta vossa amiga, quando viajava periodicamente em trabalho para a Índia, às tantas deixou de fazer a profilaxia da malária porque estava um tanto saturada do quinino (exceto no gin tónico) ou dos outros químicos potentes. Quem não quer os reforços a cada década contra o tétano deve poder recusá-los sem mais consequências que não o risco próprio.

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Sucede que vacinar os filhos não tem nada a ver com questões de liberdade individual. Os filhos são seres diferentes dos pais, com dignidade própria. Os progenitores não têm legitimidade para tomar decisões que periguem a saúde e vida dos filhos ou que lhes causem danos irreversíveis. Para uma liberal como eu, que defende um estado circunscrito às suas funções primordiais, esta é precisamente uma função nobre do estado: garantir que aqueles que não estão em estado de exercer a sua liberdade e autonomia (é o caso das crianças) não têm os seus interesses mais basilares anulados ou ignorados por idiotices ideológicas, religiosas ou outras excentricidades, dos pais ou tutores. Tal como um progenitor naturalista não deve poder impedir a sua criança de ir à escola aprender essa construção humana que é ler e escrever, também não pode ter a liberdade de expor os seus filhos a doenças perigosas evitáveis pelas vacinas. Não há liberdade para decidir impor danos graves e permanentes à vida de terceiros.

Enquanto debatemos a forma das penalizações aos pais exóticos, devemos começar a usar já o método mais eficaz para espantar a estupidez da natureza humana: uma feroz reprovação social a quem não vacina os filhos.

(Uma nota final, também envolvendo crianças. Marcelo Rebelo de Sousa estava sem nada que fazer no Palácio de Belém quando abalou para Tires – logo a seguir a informar disso a comunicação social – por causa de um acidente com uma aeronave. Bom, não me sinto capaz de comentar devidamente este ato do Presidente. Estou quase a sugerir, como alguns maluquinhos para os atentados terroristas, que os jornais parem de dar notícias sobre MRS, a ver se o contemos. Em todo o caso, já que Marcelo Rebelo de Sousa quer tanto ajudar a carregar os fardos da população, eu venho aqui meter uma cunha para os meus filhos. Já contei que o mais novo implica atrozmente com os TPC. Caro Presidente: ficava-lhe muito bem passar cá por casa uma ou duas vezes por semana para ajudar o petiz – desde logo porque a mãe também implica com os TPC. E que tal gastar uma hora de expediente semanal na enfermaria do colégio dos catraios? Aposto que teria uma fila tremenda de crianças e adolescentes para receberem de V. Exa. dez mililitros de xarope de paracetamol e, logo a seguir, tirarem uma selfie. Seria uma bonita atividade para gerar carinho nos mais novos pelos cargos políticos. Espero que goste das sugestões. Um beijinho repenicado e afetuoso.)