Numa Rússia onde o poder necessita cada vez mais de argumentos para justificar a sua política interna e externa, para legitimar um poder cada vez mais autoritário e limitador dos direitos humanos, o Presidente Putin recorre à história, procurando reabilitar figuras cuja política possa justificar a sua própria.

Todos os dias os políticos nos surpreendem nas mais diversas esferas, principalmente no que respeita à manipulação dos cérebros dos cidadãos. Por exemplo, o Presidente russo, Vladimir Putin, prendou-nos com uma “grande novidade”: afinal o czar Ivan não era Terrível e tudo não passou de mais um golpe de propaganda do Vaticano.

Num encontro com trabalhadores metalúrgicos, Putin declarou: “Olhemos para a conhecida lenda de que Ivan, o Terrível, matou o seu filho. Ainda não está confirmado se ele matou o filho ou não. Muitos estudiosos consideram que ele não matou ninguém, mas tudo foi inventado pelo núncio papal que veio realizar conversações e tentou transformar a Rus Ortodoxa na Rus Católica. E, quando Ivan Vassilievitch o mandou a uma certa parte (sic), surgiu o tipo de lendas, etc., etc.”.

Como se costuma dizer, o dirigente “matou dois coelhos com uma paulada”: “reabilitou” Ivan o Terrível e confirmou a tese dos que afirmam de que já é antiga a tradição de atirar as culpas para cima dos estrangeiros. O cognome de Terrível foi dado por Antonio Possevino, que era delegado papal e, ao contrário do que afirma Putin, não era núncio apostólico, pois não era representante diplomático permanente.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Outra das justificações para os crimes de Ivan IV é que, acrescenta Putin, “se se olhar para esse período nos outros países, era tudo a mesma coisa. O tempo era bastante cruel. E eu agora não quero dizer que, Ivan, o Terrível, era todo branquinho e fofinho, talvez tenha sido um homem duro”.

Extrapolem estas conclusões para o séc. XX e os resultados são trágicos. A propósito, o ditador comunista José Estaline foi o grande reabilitador da imagem de Ivan IV, justificando a crueldade do czar e da sua opritchina [polícia política da época] face a todas as camadas da sociedade russa. Vale sempre ver o filme “Ivan, o Terrível” de Serguei Eiseinstein.

Mas o curioso é que o Presidente Putin se baseia, ao fazer estas declarações, em “muitos estudiosos”, sem nomear nenhum em concreto, pois os mais conhecidos historiadores russos atiram por terra as declarações do actual dirigente da Rússia.

Serguei Soloviov, um dos mais conceituados historiadores russos, reconheceu a complexidade da figura do czar Ivan, os seus feitos históricos, mas frisou: “Homem de carne e osso, ele não tinha consciência dos meios morais, espirituais para afirmar a verdade e a ordem, ou, o que era pior, tendo consistência deles, esquecia-os; em vez de curar, ele piorou a doença, aplicou ainda mais torturas, fogueiras e cepos… O historiador não pode pronunciar a palavra justificação em relação a um homem desses”.

Outro grande historiador russo, Vladimir Kliutchevski foi ainda mais duro: “A importância histórica do czar Ivan na história do nosso Estado está longe de ser tão grande como se pensa, se julgarmos pelas suas intenções e iniciativas, pelo barulho provocado pela sua actividade. O Terrível fazia mais do que planeava… A vida do Estado da Moscóvia organizar-se-ia também sem Ivan, tal como se organizou antes e depois dele, mas, sem ele, essa constituição seria mais fácil e mais linear do que com ele: as mais importantes questões políticas eram solucionadas sem as convulsões que ele preparou”.

Um dos crimes mais conhecidos de Ivan, o Terrível, provado e comprovado por fontes históricas, foi o assassinato do Metropolita Ortodoxo Filipe. Crítico da política repressiva do czar, foi afastado desse cargo e exilado para um mosteiro, onde foi assassinado por Maliuta Skuratov.

A Igreja Ortodoxa Russa elevou aos altares Santo Filipe, pois foi considerado um mártir. Mas os actuais hierarcas ortodoxos não têm a mesma coragem de levantar a sua voz contra o poder existente, pelo contrário, servem-no com toda a lealdade e apoio. Alguns influentes clérigos ortodoxos defendem o retorno à monarquia, embora ainda não tenham ousadia de pronunciar o nome do próximo czar. Entretanto, continuam a dizer eles, “todo o poder vem de Deus”.