Em Portugal coexistem a respeito de referências duas práticas: de si, todos dão as melhores; dos outros, todos as dão a eles. A primeira prática tem a ver com a nossa inclinação para não imaginar que possamos ter defeitos; a segunda tem a ver com a nossa tendência para a delicadeza de opinião.

A delicadeza de opinião exerce-se no modo seguinte: alguém vai ter com outra pessoa e pede uma carta de referência; a outra pessoa escreve prontamente a carta; entrega-a aberta a quem lha pediu; depois de um momento em que requerido e requerente anunciam que entre ambos não existem segredos, o requerente faz uma fotocópia (não vá ser precisa para qualquer outro fim); e encaminha a carta para o destino final.

Esta maneira de fazer as coisas reflecte-se na prosa utilizada. Como a carta vai ser lida por quem a pediu mas também por aquele a quem se destina, quem a escreve tenta conciliar aquilo que quer realmente dizer com aquilo que pretende que cada um leia. Ao ler referências às suas “qualidades satisfatórias” e ao “nível assinalável” do seu empenho o visado sentirá satisfação, visto que ‘qualidade’ quer dizer qualidade e ‘satisfatória’ quer dizer satisfatória; mas o destinatário perceberá com argúcia que ‘satisfatória’ também quer dizer negligenciável; e que uma qualidade negligenciável será na melhor das hipóteses um defeito.

É por esta razão que as cartas de referência portuguesas se caracterizam por omitir manifestações de opinião. Nisso contrastam com o outro grande género epistolográfico nacional: as cartas anónimas. Nas cartas anónimas são cultivadas opiniões vigorosas. Tais opiniões são muitas vezes atribuídas a terceiros inexistentes, de modo a não prejudicar os seus autores; não é de excluir que estes possam no futuro vir a precisar das recomendações daqueles sobre quem se pronunciaram com desassombro. Não será o caso de que ao escrever cartas de referência não tenhamos também opiniões. Mas porque as nossas opiniões sobre os outros são naturalmente negativas, a sua omissão revela antes a virtude da nossa cortesia; e como às nossas opiniões negativas convém que fiquem secretas, a omissão revela também prudência.

O único tipo de referências onde os juízos são desassombrados e as manifestações de opinião são públicas são as referências que damos de nós próprios. Tal como não queremos magoar os outros, assim não hesitamos em nos sacrificar em público ao veredicto da nossa própria opinião. Esta severidade não tem felizmente consequências nefastas; como estamos muito perto de nós próprios estamos sempre muito perto das nossas melhores qualidades. A essa distância tão curta revela-se sem dificuldade o nosso conhecimento do mundo, a nossa perspicácia e o nosso desinteresse; mostra-se que temos razão ou bom gosto como um elefante tem uma tromba, ou um círculo uma circunferência. As qualidades dos outros poderão apresentar um nível assinalável ou até satisfatório: de nós próprios damos porém as melhores referências.

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