Quando chegar a nossa hora e formos finalmente presos existirão em Portugal do ponto de vista linguístico duas possibilidades principais: ou sermos referidos na imprensa e na justiça por um diminutivo; ou sermos tratados por um título académico. Ambas as formas de tratamento tendem a obscurecer o facto bruto de ter havido um crime: a primeira porque o vê como natural; e a segunda porque o vê como improvável. A primeira forma ilustra o princípio segundo o qual existe na natureza daqueles a quem nos referimos por um diminutivo uma tendência para a asneira; e a segunda realça a dificuldade de se correlacionar a educação com a prática de acções menos felizes.

A invocação de habilitações académicas está ligada à presunção de inocência. A presunção não é nesses casos afectada, nem mesmo pela rejeição do último recurso pelo último tribunal da última instância. Não será assim para nós consolação negligenciável saber que ao apodrecer na prisão sob forma licenciada continuaremos para sempre a ser conhecidos como comitentes alegados do que tiver sido cometido. Será notada a desproporção entre o azar da nossa pena presente e a elevação a que o estudo e o trabalho anterior nos tinham conduzido. Este contraste é em si uma história de interesse humano. Ao entrar na prisão como licenciados tornamo-nos sócios vitalícios do Engenheiro de Monte Cristo.

Àqueles poucos a quem não acontece ter concluído o ensino superior estão todavia reservados diminutivos. Esta forma de tratamento menos solene é avessa à presunção da inocência, e por uma razão fácil de explicar: usar diminutivos no contexto judicial das publicações periódicas e dos tribunais sugere conhecimento antigo das classes criminosas; e desdém por aqueles que se conhece de ginjeira. Naturalmente, e porque qualquer pessoa pode em princípio fazer qualquer coisa, há sempre o risco de não conseguir substanciar o nosso uso com os factos que provam as acções da pessoa particular a quem nos estamos a referir. É porém um risco que vale bem a pena correr: os diminutivos mostram visão, elegância jurídica, e argúcia.

De facto, se os jornais e os seus leitores tratam alguém pelo seu diminutivo só pode ser porque já o conhecem; e saberão não apenas aquilo que é em princípio capaz de fazer como aquilo que terá decerto feito. Não precisam que outras pessoas necessariamente menos íntimas se dêem ao trabalho e à despesa de repetir o que por intuição estavam já cansados de saber. Em cabeleireiros, autocarros, leitarias e tribunais, e por todos os lados onde se lêem títulos e ouvem notícias, o uso de um diminutivo fertiliza nos leitores as capacidades de penetração; e a tendência para decidir com base nas suas convicções íntimas. A culpa é formada por convicção dos leitores; mais tarde será tornada oficial por convicção do juíz.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR