Hesitei antes de escrever esta crónica.

A notícia passou em todos os telejornais, foi objecto de crónicas, reportagens e comentários. Respigo deste mesmo jornal uma frase: “O ataque terrorista a uma escola militar em Peshawar, no Paquistão, vitimou 148 pessoas, entre as quais mais de 130 alunos. Pelo menos três professores foram regados com gasolina e queimados vivos”.

Tratou-se de uma acção do grupo de talibã paquistaneses designado tehreek-e-taliban, que há muito mantém com o governo do país um sangrento conflito. Discutem-se os pormenores do ataque e as motivações dos responsáveis, os quais já afirmaram que os jovens estudantes, entre os 12 e os 16 anos, são quase todos filhos de militares e pretendem seguir o exemplo dos pais e perseguir militantes islâmicos, razão para o sucedido.

Hesitei antes de escrever esta crónica. Já muito se escreveu sobre o ataque. O que posso dizer de novo? Os militantes islâmicos entraram na escola e começaram a disparar sobre os jovens aos gritos “Deus é grande”. Deus!

Até os talibã afegãos, que têm uma grande proximidade com os atacantes, seja ideológica, de obediência, seja até no terreno em que operam, os criticaram, dizendo que o assassinato de mulheres e crianças é contra os ensinamentos do Corão. Claro que o historial dos islamitas afegãos torna afirmações como esta de duvidosa credibilidade, mais parecendo uma reacção à reacção provocada pelo massacre.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Hesitei antes de escrever esta crónica. Afinal, só nos últimos dois anos, houve 12 ataques significativos no Paquistão, com 696 mortos. Ataques suicidas, bombas em mercados, carros-bomba, cerco ao aeroporto, de tudo um pouco tem conhecido o país nesta guerra aberta com o fundamentalismo. O terror vivo permanece, o ódio permanece, a vileza humana não cede.

Um adolescente foi atingido nas pernas e fingiu-se de morto para escapar. Uma professora colocou-se entre os assassinos e as crianças, clamando “para as atingir têm de passar por mim”; foi posta em fogo, feita em cinzas, Fénix sacrificial para não mais renascer.

Hesitei antes de escrever esta crónica. Consultei os meus livros de ciência política, reli mestres do pensamento contemporâneo e ninguém explica o horror transcendente deste mal. Hanna Arendt, sobre um dos mais sinistros crimes da História da Humanidade descobriu-lhe banalidade. Os fundamentalistas islâmicos devolveram ao mal brutalidade, impiedade e espectáculo: ferro e fogo a voar em mercados apinhados, homens-bomba a sério, pescoços cortados lentamente com facas mal afiadas, vídeos cor de laranja a circular na net, instantaneamente virais, jovens raparigas raptadas e violadas às dezenas, às centenas.

Hesitei antes de escrever esta crónica. Não tenho nada a acrescentar. Sei que as minhas palavras não trarão luz ao mistério que é a mente dos radicais, dos islamistas fundamentalistas, dos talibã. Mas sei também que em breve, muito depressa, as 141 pessoas agora mortas, as 130 e tal crianças que não viverão mais, desaparecerão do nosso registo quotidiano substituídas pelo próximo escândalo bancário, político ou social.

Passou-se lá longe. É gente estranha. Não temos nada a ver com eles. E os noticiários do nosso descontentamento ficarão tranquilamente vazios de informação sobre a matança de Peshawar, apenas mais um num longo rol das humanas misérias. Comparo mentalmente o rápido esvair da atenção dada a este assunto com o frenesim mediático que se seguiu (e durou) aos 77 mortos noruegueses, vítimas da loucura assassina de Anders Behring Breivik. O que significa a diferença de tratamento dado aos dois casos?

Hesitei antes de escrever esta crónica. E só me ocorre perguntar porquê, muito pouco para alguém tão generosamente convidado a escrever num jornal como este que me acolhe. Devia aprofundar: explicar sociologicamente a revolta islâmica – dos radicais, talibãs, da Frente Al Nusra, Estado Islâmico, Boko Haram -, remontar à história do islamismo, perceber a génese do fundamentalismo islâmico. Mas não o farei, hoje não.

Deixo uma pergunta só: se perante este horror o Ocidente nada faz, então quando o fará? O mesmo Ocidente – americanos e seus aliados europeus, a que se podem acrescentar australianos e canadianos – que foi lesto a intervir no Iraque, uma e outra vez, que apoiou a revolta na Líbia, que se mobilizou para proteger os navios mercantes na costa somali, nada faz, nem sequer discute a hipótese de agir de algum modo significativo?

Chegam os protestos, as palavras indignadas, a reprimenda Papal? O que pode o símbolo contra o terror sanguinolento irrespeitoso da vida humana? Tem havido tímidas tentativas de intervenção, é certo, no norte da Síria ou no Iraque, mas aí estão envolvidos reféns ocidentais e o tradicional temor dos decisores pela opinião pública ocidental.

130 crianças mortas, um horror sem nome e… nada?

Hesitei antes de escrever esta crónica, antecipando as críticas. Perdoem-me, se puderem, mas não podia não escrever. Foi mais forte do que eu. E pergunto (só mais uma) onde estão agora e o que fazem os Homens e Mulheres do Ocidente, os que inventaram a democracia, a tolerância e o respeito pelos direitos das pessoas, onde estão eles quando a decência e a vida humana são feitas em farrapos, dilaceradas pelos dentes vis dos cães danados?

Termino com as palavras de Khawaja Asif, ministro da defesa do Paquistão: “Quanto mais pequeno é o caixão, mais pesa”.

Hesitei muito antes de escrever esta crónica.

 

CONTEMPORÂNEO. Professor da Universidade Católica – Instituto de Estudos Políticos