Muito se escreveu recentemente sobre as recentes decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) acerca o uso do véu islâmico no contexto laboral. Vários dedos se apontaram ao TJUE pela sua alegada decisão de permitir que os empregadores possam impor aos seus trabalhadores a proibição de uso do véu islâmico, comprometendo com isso a liberdade religiosa de cada um. Reconhecendo o mérito de muitas dessas críticas, vale a pena, não obstante, clarificar o alcance dos precedentes ora estabelecidos, e reflectir no que eles significam e implicam para o difícil equilíbrio entre as liberdades de uns e de outros.

1. Dois casos diferentes. Antes de mais, importa notar que o TJUE decidiu, no mesmo dia, por via de dois acórdãos distintos, dois casos diferentes. O primeiro trata-se de um caso belga, que opôs Samira Achbita à empresa G4S Secure Solutions NV, que se dedica à prestação de serviços de recepção e acolhimento a clientes tanto do sector público como do sector privado. A empresa impõe que os seus recepcionistas não utilizem no local de trabalho sinais visíveis das suas convicções políticas, filosóficas ou religiosas. Tendo, em determinado momento informado o seu empregador de que passaria a usar o véu islâmico no exercício das suas funções, a Sra. Achbita veio a ser despedida.

O segundo caso, um caso francês, envolve um conflito entre Asma Bougnaoui e a Micropole SA. Contratada para fazer um estágio na empresa, a Sra. Bougnaoui começou por usar uma simples bandana, tendo, posteriormente, usado um lenço islâmico no seu local de trabalho. No final do estágio, a Micropole contratou-a, por tempo indeterminado, na qualidade de engenheira de projectos. Foi, mais tarde, despedida em virtude de se ter recusado a não envergar o véu quando os clientes da empresa informaram esta última de que o uso do véu os incomodava.

2. A Directiva e a igualdade de tratamento. Ambos os casos dizem respeito à interpretação dos conceitos de discriminação directa e indirecta constantes da Directiva 2000/78, do Conselho, de 27 de Novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na actividade profissional. A Directiva estabelece que os Estados-Membros podem prever que uma diferença de tratamento não constituiu discriminação sempre que, em virtude da natureza da actividade profissional em causa ou do contexto da sua execução, essa característica constitua um requisito essencial e determinante para o exercício dessa actividade, na condição de o objectivo ser legítimo e o requisito proporcional.

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3. A liberdade religiosa. No entendimento do TJUE, ambos os casos envolvem a conciliação da liberdade de empresa com a liberdade de religião, protegida pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a Carta dos Direitos Fundamentais da União e as tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros, entendida como “a liberdade de mudar de religião ou de convicção, bem como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individual ou colectivamente, em público ou em privado, através do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos”.

4. A discriminação. Em ambos os casos o TJUE considerou que não existia discriminação directa, uma vez que aquelas pessoas em concreto não teriam sido objecto de um tratamento menos favorável do que aquele que é dado a outra pessoa em situação comparável. Não obstante, nos dois casos, o TJUE admitiu que poderia existir uma discriminação indirecta, na medida em que as decisões de proibição de uso de sinais religiosos poderiam ter um impacto maior na comunidade islâmica que em outros grupos de pessoas. Em qualquer caso, o TJUE remeteu essa apreciação para os tribunais nacionais, não resolvendo a questão em definitivo.

5. Justificação. Entrando no “nó górdio” dos casos, o TJUE admitiu, no primeiro caso, que uma eventual discriminação indirecta poderia ser justificada à luz da prossecução de uma política de neutralidade da empresa para com os seus clientes, uma vez que este interesse cabe na liberdade de empresa, designadamente quando o empregador envolve na prossecução desse objectivo apenas os trabalhadores que devem entrar em contacto com os seus clientes. Aqui, a proibição de uso do véu é apta à prossecução desse objectivo se corresponder a uma política aplicada de forma coerente e sistemática. Em qualquer caso, segundo o TJUE, importa verificar (i) se a proibição em causa abrange unicamente os trabalhadores que se relacionam com os clientes, e (ii) se, sem que esta tivesse de suportar um encargo suplementar, teria sido possível à empresa propor um posto de trabalho que não implicasse contacto visual com esses clientes, em vez de proceder ao despedimento da trabalhadora.

Já no segundo caso, TJUE afirmou que só em circunstâncias muito limitadas uma característica relacionada com a religião pode constituir um requisito profissional essencial e determinante. Este conceito remete para uma exigência objectivamente ditada pela natureza ou pelas condições de exercício da actividade profissional em causa, pelo que não pode abranger considerações subjectivas, como a vontade do empregador de ter em conta os desejos concretos de um cliente.

Tribunal de Justiça da União Europeia diz que empresas podem proibir uso de véu islâmico

De tudo isto decorre que, lidas as decisões com a atenção que merecem, conclui-se, na verdade, que o TJUE adoptou nos dois casos posições de sinal oposto. No primeiro caso, onde estava em causa a prestação de serviços de recepção e de acolhimento, o TJUE admite que a liberdade de empresa possa cobrir a exigência de não uso do véu, ainda que apenas quando está em causa o contacto directo com clientes, e devendo a empresa procurar oferecer uma alternativa ao trabalhador. No segundo caso, onde estava em causa a prestação de serviços de consultoria informática, o TJUE considerou que a exigência de não uso do véu não constitui um requisito essencial e determinante para o exercício da função, e que tal proibição não pode ser imposta aos trabalhadores. Logo, o TJUE não validou ilimitadamente as proibições de uso do hijab impostas pelos empregadores. Reconhecendo a centralidade dos interesses pessoais em causa, o TJUE foi até exigente quanto às condições em que a um empregador pode ser legítimo impor uma proibição dessa natureza.

É que, na verdade, estão em causa, mais do que dimensões de liberdade religiosa ‑ ainda que entendida esta como a liberdade de manifestar in forum externum as suas convicções ‑, dimensões fundamentais de identidade e liberdade pessoal: o direito a ser-se quem se é e a liberdade intimíssima de fazer escolhas que só a cada um respeitam. Escolhas quanto ao que vestir, usar, ou calçar (que podem, ou não, ter uma dimensão religiosa fundamental, mas que vão seguramente além dela). Não se trata apenas do direito de envergar um véu, uma burqa, o niqab, uma quipá, um dastar (turbante), um hábito, ou uma cruz ao peito. Estará em causa também o uso de piercings, cabelos pintados, trajes góticos ou os mais diversos statements ideológicos no contexto laboral. E certamente todas as restrições que se imponham a essa liberdade fundamental de ser-se quem se é, do modo como se quer ser, devem limitar-se ao mínimo, e não podem fundar-se num preconceito diminuidor da dignidade individual.

Mas o direito a ser-se quem se é também vale, em certa medida, para as empresas, que têm de poder definir a sua identidade empresarial, a qual não passa só pela eventual imposição de uso de farda, de capacete, ou de cabelo curto, mas pela liberdade de concepção e comercialização de produtos ou serviços com certas características. Religiosos ou não. Laicos ou não. É precisamente aqui que a ponderação do que seja essencial e determinante ao exercício da função para a qual se foi contratado se revela decisiva. E é também possivelmente neste ponto que os acórdãos do TJUE tenham ficado aquém do desejável. Percebe-se que quem recusa trabalhar em dias santos, dificilmente poderá ser empregada numa loja de conveniência aberta 24h. Quem recusa despir uma burqa não pode ser modelo fotográfica de uma marca de lingerie. E que quem recusa retirar o turbante dificilmente poderá ser contratado para funções que requeiram – até por lei – o uso de capacete protector.

É bom e saudável que as decisões dos tribunais sejam colectivamente escrutinadas, mas também a elas devemos justiça. É precipitado afirmar-se que o TJUE validou, em geral, as políticas laborais de neutralidade (que, aliás, nada têm de neutras). Desde logo, o TJUE não decidiu os casos em definitivo, o que competirá exclusivamente aos tribunais nacionais. Chamado a decidir sobre a difícil conciliação entre a liberdade das pessoas e a liberdade das empresas, para o TJUE, umas opções valem, outras não. É que só no escuro, é que todas as cores combinam.

Professora da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa; Advogada.