Em Outubro do ano passado, Rui Vitória, acossado pela memória de um antecessor vitorioso, estava preso num labirinto, os jogadores estavam perdidos em campo e os adeptos desesperavam nas bancadas. Faltava ordem, organização, um jogo coerente. Faltavam ideias. E quando falta tudo isso o que é que um treinador faz? Aposta num selvagem da bola, num espontâneo, num miúdo de dezoito anos a quem apontavam a imaturidade, o deficiente posicionamento sem bola, a imprecisão nos passes e que, apesar de tantos defeitos, pegou na equipa às costas, iluminou o campo e obrigou os colegas – muito mais experientes e com elevada maturidade táctica – a segui-lo, a acompanhar o seu ritmo frenético e ir a reboque das suas cavalgadas anti-tácticas, tão anti-tácticas que os adversários, que esfregavam as mãos de contentes à espera da rigidez táctica do Benfica, ficavam baralhados, como se a meio de um jogo de xadrez alguém começasse a jogar com as regras das damas.

Todos os treinadores gostam de ter nas mãos um diamante em bruto para que o possam lapidar e, quando chegar à altura de o expor na vitrine, recolher os louros parciais da beleza do diamante. Mas a inteligência de um treinador também se revela quando entende que o excesso de lapidação pode quebrar o diamante em mil pedacinhos. Há pouco tempo, foi lançado em Portugal um livro de um neuro-cirurgião, Henry Marsh, em que este relata a sua experiência de décadas a operar pacientes. Para ele, mais importante do que operar bem é saber quando se deve ou não avançar para a operação. O problema, diz ele, é que os neuro-cirurgiões gostam tanto do acto da operação – afinal foi para isso que estudaram – que muitas vezes decidem operar mesmo quando esse não é a opção correcta. O livro tem o título “Não faças mal”, que vai buscar a primeira regra de Hipócrates, o pai da medicina. Ora, os treinadores têm algo de neuro-cirurgião. Em caso de dúvida, avançam para a operação, tentam inventar porque é assim que imprimem aquilo a que Mário Wilson chamava de “cunho pessoal”. Esquecem-se da regra de Hipócrates. Veja-se o caso de Rafa Benítez. Quando saiu do Real Madrid, circulou a notícia de que teria tentado ensinar Ronaldo a fintar e a rematar. Esqueceu-se da trigésima segunda regra de Hipócrates: “não faças figura de parvo.”

Rui Vitória teve a inteligência de lançar o diamante em bruto sem se preocupar muito com as imperfeições. Imperfeições que, além do mais, lhe emprestavam o ar de vagabundo, de fera à solta de que as bancadas tanto gostam. Mais prudente, Fernando Santos hesitou na convocação de Renato e, já em França, hesitou em lançá-lo de início. Depois, agarrou-se à ideia consoladora de que aquele futebol incendiário só pegava fogo a meio dos jogos, depois de a palha secar. Até que ontem o seleccionador fechou os olhos, encomendou-se à Virgem e não ficou à espera que a palha secasse. Resultado? Renato incendiou o campo.

Mas o melhor estava guardado para o fim. Para o momento em que Renato pegou na bola e se dirigiu para a grande área, naquela caminhada angustiante em que até as pernas dos mais fortes fraquejam, para converter a segunda grande penalidade de Portugal com frieza soviética. E foi aí que ele se libertou de todos os adjectivos – selvagem, espontâneo, indomável, explosivo e imaturo – com que o procurámos domesticar. No final, Renato contou que foi ele a pedir ao treinador para bater o segundo penálti. Terá sido um acto temerário ou uma manifestação de coragem? Deixemos as avaliações para outro dia. A história só agora começou.

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