O leitor mais atento certamente terá notado que sempre que o Papa Francisco fala sobre economia ou política há a necessidade imediata de uma interpretação daquilo que Sua Santidade decidiu, no calor do momento, dizer. Tal sucede porque o que o Papa Francisco diz sobre política e economia é, no mínimo, tão misterioso quanto o fenómeno de Fátima. Isto para não falar de algumas coisas que ‘faz’.

Os comentários feitos por Sua Santidade aquando do ataque terrorista ao jornal Charlie Ebdo, a sua aceitação de uma cruz com a foice e o martelo oferecida por Evo Morales, a sua presença num congresso de movimentos de extrema esquerda aquando da sua visita à Bolívia (e no qual o Papa esteve sentado ao lado de um Evo Morales vestido com um casaco envergando a imagem do Che Guevara), são exemplos de atitudes que na realidade têm confundido. Para todas estas atitudes e mal-entendidos não têm faltado explicações, algumas delas com algum sentido. Sim, é verdade que Evo Morales não prima pela finura diplomática e que a Igreja na Bolívia tem sido o alvo principal dos devaneios revolucionários da figura. Sua Santidade muito provavelmente fez o que tinha a fazer, e podemos esquecer o assunto! Quanto ao Charlie Ebdo, não comento.

No entretanto, como é próprio dos Pontífices, lá apareceram os ditos escritos. Não há dúvidas que os mais polémicos são os escritos politico-económicos, os quais merecem debate sério. Infelizmente, tal debate não tem ocorrido. Isto por duas razões, parece-me. Em primeiro porque os tais escritos carecem infelizmente de rigor intelectual, não sendo por isso propriamente estimulantes (o famigerado texto sobre a ‘economia que mata’ é particularmente fraco). É triste termos que dizer isto, mas as coisas muitas vezes são o que são. Em segundo porque os escritos politico-económicos do Papa têm sido apresentados sistematicamente como pertencendo a outra ordem que não a nossa, meros mortais. Sem excepção, os defensores da ‘visão politico-económica’ do Papa investem o seu tempo a tentar demonstrar que estamos perante algo que desafia a nossa razão e por isso pertence à ordem da revelação divina, só acessível a místicos ou aos 3 Pastorinhos: é um plano da caridade que desconhecemos (eles conhecem, claro); é uma ‘antropologia Cristã não compreensível’ a ‘relativistas’ e ‘individualistas’ (eles tiveram a graça de compreender desde pequeninos); é a negação do egoísmo (podemos verificar, no Facebook, que eles já estiveram em África em missões de grande abnegação); é uma nova economia, a qual não vem nos manuais (juro que já li isto… e escrito por gente séria…). É da mais básica justiça deixar claro que o Papa Francisco nunca entrou neste tipo de argumentação. No entanto, não é compreensível esta tentativa por parte de alguns de classificar como sendo da ordem divina algo que é bem terrestre: chama-se socialismo.

Após as afirmações do Papa feitas à Academia Pontifícia de Ciências Sociais no passado dia 28 de Abril já não temos dúvidas, sendo que a argumentação dos abençoados com a faculdade do ‘entendimento místico’ cai por terra: o Papa rejeita a possibilidade liberal e faz afirmações que o posicionam como socialista. No seu comunicado, o qual li em Inglês, o Papa refere-se ao ‘libertarian individualism’ como um ‘fallacious paradigm’. É explícito! Acerca da deriva socialista, materialista, nacionalista e populista que grassa no Ocidente o Papa nada diz. Nunca o Papa, na sua comunicação, refere os termos socialismo, populismo ou nacionalismo. E na única vez em que o Papa refere o materialismo é para o associar ao egoísmo, à ganância e à concorrência injusta.

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O socialismo materialista que atribui a estruturas ‘socio-materiais’ as causas da desigualdade nunca é explicitamente mencionado, mas está bem presente. Por exemplo quando Sua Santidade fala da desigualdade: ‘Inequalities – along with wars for dominance, and climate change – are the causes of the greatest forced migration in history’; ‘inequalities and iniquities as the consequence of a global economic dictatorship’; ’what makes people suffer the most and leads to the rebellion of citizens is the contrast between the theoretical attribution of equal rights for all and the unequal distribution of goods for most people’.

Não há dúvidas. O Papa é também vítima da falácia clássica, devidamente exposta por Hayek: igualdade perante a lei não implica igualdade económica e social. Na verdade a desigualdade, quando decorre das diferenças individuais, é natural, saudável e extremamente positiva pois é a única forma de garantir o desenvolvimento livre das sociedades. A igualdade forçada, totalitária, centralmente desenhada e materialmente empobrecedora é visível na Venezuela de Chavez e Maduro, as duas luminárias de uma economia que afinal parece matar mais do que a outra.

Não são necessárias experiências místicas para vermos com clareza as revelações que o socialismo tem feito na Venezuela. Contudo, quando o Papa se refere a uma ‘society of unhappy and desperate people from whom everybody would try to flee, in extreme cases even by suicide’ está a referir-se a uma sociedade liberal e não à Venezuela. Na Venezuela, uma sociedade fraternalmente igualitária, aparentemente ninguém pondera o suicídio… E na mesma semana em que o Papa emite este comunicado faz um comentário sobre a Venezuela extremamente infeliz. Como já é habitual, as explicações sucederam-se, sendo que nenhuma delas (absolutamente nenhuma) nega o que o Papa disse.

Interpretar a crise de refugiados parece ser fácil: é culpa do individualismo libertário, fonte do egoísmo, e das alterações climáticas (sem comentários…); interpretar a crise na Venezuela já é mais difícil: há todo um contexto que explica aquelas palavras e que o Papa, dizem, conhece bem. Mais uma vez, nós, os terráqueos, estamos errados porque desconhecemos. Ultimamente dou por mim a agradecer a Deus não ser místico: dispenso estas visões do inferno! De novo, é da mais elementar justiça dizer que não é o Papa Francisco quem entra neste tipo de justificação primária.

A comunicação do Papa está ainda repleta de mal entendidos sobre o que é o liberalismo e de comentários falaciosos em torno da noção de liberdade. Jeffrey Tucker, da Foundation for Economic Education, já expôs a interpretação profundamente errada que o Papa faz do liberalismo, mostrando até como a posição do Papa é contrária à defendida pela Igreja (incluindo os próprios Jesuítas) ao longo dos séculos. Aliás, a confusão de Sua Santidade acerca do liberalismo é bem visível quando afirma que ‘indeed, while solidarity is the principle of social planning that allows the unequal to become equal; fraternity is what allows the equal to be different people.’ Esta frase parece em total contradição com o que o Papa, no mesmo texto, afirma sobre o liberalismo. E são precisamente este tipo de frases aparentemente contraditórias que merecem debate sério e liberto de argumentações carregadas de um fervor espiritual primário e superficial.

Um debate intelectualmente sério sobre o significado de liberdade, fraternidade, solidariedade, caridade e por aí adiante é extremamente bem-vindo e urgente, especialmente dada a confusão originada em torno das sucessivas declarações do Papa. Muito provavelmente o Papa está a lançar-nos desafios, mais não seja porque o seu papel não é certamente envolver-se em debates intelectuais sobre o liberalismo.

Contudo, e dado que não temos clareza acerca das intenções do Papa, é legítimo, com os dados que temos, afirmar que o Papa é socialista. Ao contrário do que alguns comentadores auto-proclamados candidatos a santos pretendem sugerir, o Papa não desenvolveu qualquer tipo de pensamento único centrado nos pobres, inacessível aos menos iluminados ou sequer assente em qualquer tipo de antropologia cristã que demora muito tempo a compreender (também li isto… as coisas que um indivíduo lê…). O pensamento politico-económico do Papa está classificado há muito: é o socialismo. O Papa está genuinamente centrado nos pobres, mas claramente acredita nos resultados de uma solução socialista; os liberais também estão genuinamente centrados na pobreza, mas propomos uma solução um ‘tudo-nada’ diferente. É somente isto!

A legitimidade de Sua Santidade, a sua simplicidade genuína, o seu amor pelos pobres, o seu fervor espiritual, a sua proximidade ao Povo de Deus e a beleza dos seus escritos espirituais não estão em causa. Está contudo por estabelecer a relação de causalidade entre a santidade de uma pessoa e a razoabilidade das suas opções politico-económicos.

Professor Universitário