Logo que José Sócrates foi preso, toda a oligarquia política ficou preocupada com António Costa. As formas de vida que habitam as profundidades televisivas desmultiplicaram-se imediatamente em conselhos: acima de tudo, nada de Casas Pias. O guião ficou escrito no primeiro minuto.
Costa cumpriu a sua parte por SMS logo na manhã seguinte. Faltava agora compor o ambiente. Em primeiro lugar, era preciso impedir que o debate público resvalasse para regiões inconvenientes. A rolha usada foi a venerável figura jurídica da “presunção de inocência”. É uma garantia processual, que obriga os tribunais a considerar o acusado como inocente até a sentença transitar em julgado. Durante esta semana, passou a ser outra coisa: a obrigação de toda a gente proclamar solenemente a inocência de quem ainda não tenha sido condenado. A prisão de um ex-primeiro ministro, suspeito de crimes cometidos durante o seu governo, foi assim reduzida a um caso jurídico, que só os técnicos estavam autorizados a comentar.
Conseguido isto, faltava tratar do detido. Não era um manobra fácil. Convinha que não se sentisse abandonado (sabe-se lá como poderia reagir), mas também não convinha incorrer em solidariedades comprometedoras. O Dr. Soares foi destacado para a missão, com excelente efeito. A veemência da sua visita, graças à licença de excentricidade de que hoje beneficia, não responsabilizou ninguém, mas terá bastado para consolar o novo inquilino da prisão de Évora, ao ponto de ser ele próprio, nesse mesmo dia, em comunicado nocturno, a libertar os seus antigos correligionários de qualquer obrigação. Na FIL, este sábado, o galo pôde cantar três, seis, nove vezes.
Não devemos regatear aplausos: esta foi talvez a mais brilhante operação política dos quarenta anos de democracia. Costa apareceu no congresso à vontade, ao ataque. Citou Renzi, comentou o Papa, açoitou o governo, remoeu as ideias mais velhas do regime (qualificação, modernização) como se fossem frescas revelações divinas — e ignorou Sócrates. No fim, os aplausos continuaram nas páginas dos jornais, nos ecrãs de televisão. O país político estava encantado. Depois de superado o choque com Seguro, Costa ultrapassava a prisão de Sócrates, e proporcionava à nação o espectáculo reconfortante da maior demonstração de disciplina partidária de que há memória. Houve logo quem, na vaga de entusiasmo, lembrasse que a Casa Pia antecedera a maioria absoluta.
O estimado professor Marcelo tentou há dias intrigar o povo com a hipótese de que Costa fosse um génio. Mas a genialidade está ao alcance de qualquer político quando todo o regime se reúne para o amparar, a começar pela direita. Desde o PREC que a direita vê no PS a sua muralha da China. Os mais velhos ainda temem o PCP. Os mais novos receiam um “Podemos”. A direita dos interesses, que até gostou de Sócrates, passou a crise a lamentar que o PS não estivesse no governo. Daí o chuveiro de institucionalismo desse lado. Aprendemos que as pessoas não são as instituições, que as instituições estão a “funcionar”, que a “normalidade” nunca foi tão normal. Sim, o Dr. Pangloss fez escola em Lisboa.
De facto, toda a oligarquia estava interessada em conter o escândalo. Talvez o ex-primeiro ministro agora preso seja, como alguns desesperadamente desejam, caso único, sem igual. Mas este regime deixou-o ascender e, durante seis anos, desempenhar o cargo que lhe terá permitido, apesar das dúvidas de sucessivas investigações e processos, praticar os delitos de que é suspeito. O que é que isso diz do regime? Toda a gente nos ensina agora que as instituições “funcionam”. Mas nunca funcionaram enquanto o ex-primeiro ministro mandou e, alegadamente, executava crime atrás de crime. O seu governo acabou, não por causa dos escândalos e das suspeitas, mas só porque a falta de dinheiro o precipitou na sequência fatal dos PEC. Que se deve pensar de instituições que precisam de grandes crises financeiras para “funcionarem”?