Vender e comprar produtos entre a União Europeia (UE) e os EUA está prestes a tornar-­se mais fácil com um acordo de livre comércio que pode vir a valer ao velho continente um estímulo de mais de 100 mil milhões de euros por ano. Para Portugal, pode significar um empurrão para os setores do calçado e têxtil, mas uma ameaça para um dos produtos mais exportados: o tomate transformado. Quais as vantagens e desvantagens de abrir o mercado europeu aos Estados Unidos da América? A palavra final sobre este acordo, que deverá estar fechado até ao verão de 2015, cabe ao Parlamento Europeu e aos eurodeputados eleitos no domingo.

A União Europeia e os Estados Unidos estão há um ano a preparar um tratado que vai extinguir os custos das exportações e uniformizar os padrões de qualidade entre os dois continentes. As negociações ­do Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (ou TTIP em inglês), que vão para a quinta ronda de conversações e decorrem sob grande sigilo, têm sido supervisionadas pelo Parlamento Europeu e um dos principais intervenientes neste processo é o eurodeputado português e presidente da Comissão de Comércio Internacional, Vital Moreira. O socialista afirma ao Observador que os eurodeputados exigiram ser “consultados antes e depois das rondas negociais” e têm conseguido “fazer chegar as suas preocupações” à delegação dos Estados Unidos.

Os estudos prévios de impacto na economia dos dois blocos mostram que um acordo deste género vai gerar ganhos de parte a parte, cerca de 120 mil milhões de euros para a UE e 90 mil milhões de euros para os EUA ­, aumentando em cerca de 0,5% o PIB da União. O Ministério dos Negócios Estrangeiros está a preparar um relatório sobre o impacto específico deste acordo na economia portuguesa, que deverá ficar pronto até ao início do Verão.

Para Martin Hausling, eurodeputado alemão dos Verdes, as potencialidades deste acordo não passam de “promessas vagas”. Foi, durante o mandato passado, um dos maiores opositores ao TTIP no Parlamento Europeu. Ao Observador, admite que muitas grandes empresas europeias podem estar interessadas neste acordo, mas teme que os cidadãos europeus e as pequenas e médias empresas sejam “quem tem mais a perder”. “Elas vão ter de competir com as grandes empresas norte-­americanas no mercado. Especialmente na produção agrícola, há dois concorrentes muito desiguais que se vão enfrentar: o grande negócio agrícola dos EUA contra os pequenos produtores da UE”.

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De modo a prevenir isto, o grupo dos Verdes exige “a transparência imediata” do acordo e a “exclusão do sector agrícola e alimentar das negociações”. “Embora esta área abranja apenas 5% do valor económico total do comércio transatlântico, é a mais controversa. Isto poderia facilitar as negociações”, explica Hausling. Também para Vital Moreira, a agricultura e a pecuária são os sectores mais sensíveis. No entanto, o eurodeputado português considera que cabe à UE e aos Estados­membros proteger produtos como a carne, os laticínios e todos os produtos de denominação de origem, garantindo que produtos originários da Europa não são confundidos com cópias feitas do outro lado do Atlântico. Nos Estados Unidos, é possível encontrar vinho da Madeira, vinho do Porto ou queijo parmesão “made in USA”.

A carne com hormonas e os vegetais geneticamente modificados são outros dos pontos quentes desta negociação. Martin Hausling diz que, mais do que diferenças de processos, há diferenças “éticas” entre a maneira como se produzem os bens nos EUA e na Europa.

“A maioria dos cidadãos europeus opõe-se a mega estábulos de engorda, desertos agrícolas [grandes plantações sem bioversidade] ou comida geneticamente modificada, galinhas lavadas com lixivia ou carne com hormonas”, diz Hausling.

Tomate em risco e uma oportunidade para a pêra rocha

Vital Moreira admite que há setores em risco em Portugal, como o tomate. O país é atualmente o quarto exportador mundial de tomate transformado, com um volume de negócios superior a 250 milhões de euros. João Machado, presidente da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), afirma que este caso no seio das negociações do TTIP é “particular”. “O preço do concentrado de tomate é mais barato nos EUA e, caso deixem de existir tarifas ou algum tipo de barreiras à entrada deste produto norte-americano na Europa, a indústria do tomate que existe essencialmente em Portugal, Itália, Grécia e Espanha vai ressentir-se”, avisa em declarações ao Observador.

Para Vital Moreira, a qualidade vai ser sempre “a nossa maior defesa”. Por isto, prefere falar nas oportunidades criadas pelo acordo em vez das dificuldades. Em 2013, Portugal exportou mais de dois mil milhões de euros em bens e serviços para os EUA, fazendo com que este seja o sexto país para onde Portugal mais exporta. “É um mercado impressionante e que, devido aos custos das tarifas aduaneiras e à impossibilidade de concretização de contratos públicos, ainda tem o acesso vedado para as nossas empresas” afirma, referindo-se aos sectores nacionais do têxtil e do calçado, que vêm os seus preços acrescidos em cerca de 30% devido às taxas aduaneiras.

Fora o tomate, João Machado considera que esta é uma “oportunidade única” para o sector agro-alimentar português, já que as trocas entre os EUA e a União representam 50% do comércio agro-alimentar do mundo e o acordo pode vir a resolver muitos entraves existentes. “Mais do que as tarifas aduaneiras, que para o nosso setor nem são muito pesadas, há a necessidade de alinhar a nossa legislação no que diz respeito à produção dos bens. Portugal não pode, neste momento, exportar pêra rocha para os Estados Unidos porque não há um acordo bilateral que o permita e eles não aceitam os nossos controlos de qualidade, enquanto a Itália já vende as suas pêras aos norte-americanos”, critica o presidente da CAP.

EUA e União Europeia vão passar a ter os mesmos critérios de qualidade

Este não é o primeiro acordo de comércio bilateral entre a União e outro país – um dos mais recentes foi estabelecido com o Canadá -, mas nenhum, até agora, teve uma envergadura e impacto semelhantes na economia global. Não só os Estados Unidos são o maior parceiro comercial da União Europeia, em 2012 foi o país para onde os 28 Estados-membros mais exportaram e onde os europeus mais investiram, como, em conjunto, estes dois blocos económicos têm 800 milhões de consumidores, o que duplica o mercado atualmente disponível para as empresas dos dois continentes.

Gráfico

“O TTIP será o maior acordo de comércio e investimento bilateral do mundo. As negociações estão a ser realizadas entre as duas maiores economias mundiais. Ambas são economias avançadas e complexas e cada uma tem as suas próprias regras e leis altamente desenvolvidas”, diz ao Observador John Clancy, porta-voz da direcção-geral do Comércio da Comissão Europeia.

Devido a essa complexidade, vender livremente para os EUA e vice-versa significa mais do que eliminar estas tarifas, implica unificar os padrões de qualidade entre os produtos norte-americanos e europeus de modo a poderem ser vendidos dos dois lados do Atlântico. Nuno Cunha Rodrigues, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, aponta questões como a segurança alimentar e a proteção ambiental, como alguns dos “obstáculos a esta negociação”. O advogado relembra, ainda, que fora das negociações está já o setor audiovisual e a produção cultural “por decisão do Parlamento Europeu, devido ao receio de que o acordo pusesse em risco a diversidade cultural e linguística da União Europeia”.

Há, ainda, as dificuldades em harmonizar os padrões de qualidade dos produtos vendidos nos EUA e na UE, assim como a rotulagem e os próprios testes a que são submetidos. “Terá de passar a haver um reconhecimento mútuo dos ‘standards’ de qualidade e já há propostas concretas, pelo menos a nível da indústria automóvel, das farmacêuticas e da produção de químicos”, aponta o eurodeputado.

“Por exemplo, um carro fabricado na Europa, como os modelos da BMW, tem atualmente de ser sujeito a testes de segurança aqui e nos EUA e o que queremos é que os EUA reconheçam que os nossos testes são suficientes e eficazes para os consumidores norte-americanos”, aponta Vital Moreira.

Outros exemplos das dificuldades de exportação são as rolhas de cortiça e as regulações da indústria farmacêutica. “Muitas empresas portuguesas exportadoras de vinho têm de preencher um formulário, uma vez que as rolhas de cortiça são consideradas, nos EUA, como um produto alimentar. Também as empresas farmacêuticas europeias enfrentam dificuldades por terem de registar-se na Food and Drug Administration, com um custo de 600 mil dólares, quando uma empresa concorrente americana, para o fazer na Europa, tem apenas um custo de 10 mil dólares”, sublinha Cunha Rodrigues.

Equilibrar as condições para as empresas dos dois lados do Atlântico, não só vai “tornar mais fácil comprar e vender bens e serviços num mercado transatlântico sem baixar os nossos padrões ambientais, de trabalho e de defesa do consumidor”, mas também obrigar os restantes parceiros comerciais a elevar os seus padrões de qualidade, segundo a Comissão. “Os dois lados têm altos padrões em áreas como proteção ambiental e do consumidor, o que significa que, trabalhando em conjunto, dado o tamanho de seus mercados combinados, a UE e os EUA poderiam definir o ponto de referência para futuros padrões globais”, aponta Clancy.