Chama-se FAM, de Fundo de Apoio Municipal, mas poderia ser chamado “plano troika”, porque visa criar um fundo de resgate para as autarquias. A proposta de lei, que começou quarta-feira a ser discutida no parlamento, está a gerar controvérsia entre governo e autarquias. A ideia é a de criar um Fundo para o qual todas as câmaras contribuam financeiramente, ao lado do Estado, numa tentativa de emprestar dinheiro às autarquias endividadas. Mas há já quem defenda que a proposta partiu para discussão com “erros”.

Segundo o especialista em assessoria jurídica autárquica, Miguel Pereira, a proposta já devia ter sido redigida em janeiro, “o que não aconteceu”. “Foi feita à pressa, tem remissões para artigos que não existem e indica uma lei que já foi revogada”, afirmou ao Observador. Em declarações ao Observador, o secretário de estado da administração local, Leitão Amaro, recusa as críticas e lembra que o processo legislativo ainda não terminou. Lembra ainda que a comissão começou os trabalhos de pesquisa para a lei ainda em dezembro.

“O regime de recuperação financeira municipal prevê a adoção de um programa de ajustamento municipal com medidas de reequilíbrio orçamental”, lê-se no texto introdutório.

Mas até neste texto há “erros”, acusa Miguel Pereira. O jornal Público também avançou, quarta-feira, que a primeira discussão da lei foi assente numa proposta diferente da que estava escrita, nomeadamente na percentagem de comparticipação no FMA. A lei diz que a Associação Nacional de Municípios contribui com 70% e o Estado com 30%. No parlamento, a oposição insurgiu-se e discutiu as consequências destes valores.

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Ao Observador, Leitão Amaro afirma que “nunca se referiu a quaisquer percentagens de capital do Fundo durante todo o debate”. E defendeu que:

“o facto de se falar num possível acordo, que pode vir a resultar em alteração da lei na especialidade, não quer dizer – bem pelo contrário – que a proposta discutida seja diferente da escrita”. O governante chutou, assim, para a discussão na especialidade o possível acerto das percentagens a contribuir para o FMA.

Para o especialista contactado pelo Observador, esta lei devia ter sido feita com “mais tempo” porque está cheia de “debilidades”. Lembra que não é explicado “como é que as câmaras endividadas vão contribuir para este fundo” e teme que, mais uma vez, as consequências recaiam nos bolsos dos contribuintes. “Se as autarquias precisarem de dinheiro para pagar o Fundo, vão aumentar os impostos”, revela. E dá exemplos do IMI, derrama, taxas de resíduos e tarifas de água.

O secretário de estado defende-se. E refere ao Observador que a forma de contribuição está prevista, nos artigos 17º e 19º, para todas as autarquias. “Os municípios não contribuem todos por igual para o FAM, mas em função das receitas de cada um, o qual faz com que a taxa de esforço seja semelhante (nunca superior a 1,8% da receita anual)”. Leitão Amaro lembra que todas as autarquias, até as endividadas, têm receitas. E que a principal fonte das mesmas é, precisamente, as transferências que recebem do Estado. E recusa que a proposta de lei em discussão venha lesar os contribuintes. “O IMI, que é o principal imposto local, não representa no conjunto dos municípios mais de 20% de todas as receitas. Em lado nenhum da lei se obriga ou prevê que um município tenha de aumentar impostos para pagar ao FAM”.

“A lei prevê ainda fornecer serviços de auditoria às câmaras. O Tribunal de Contas (TdC) pode fazer esse trabalho, estar a retirá-lo deste fundo pode ser muito perverso”, insiste Miguel Pereira nas suas críticas.

Leitão Amaro afirma que o TdC continua a intervir nos casos de aplicação da lei. “Isso resulta das leis já existentes que tornam obrigatória a intervenção do TdC nestes casos em que há acordos de renegociação com credores e um empréstimo do FAM”, diz. Justifica que, para afastar o TdC, teria de haver um artigo na lei a dizê-lo “e não existe”, recusando tratar-se de “serviços de auditoria”, mas sim ” de acompanhamento dos planos de ajustamento”.

O advogado Miguel Pereira insiste que há erros na lei, como a referência “errada” a uma lei no texto introdutório (a Lei 75/2013 em vez da Lei 73/2013. “A lei 2/2007 das Finanças Locais já foi revogada e continua a ser evocada erradamente, mesmo pela Associação Nacional de Municípios” (ANMP), afirma o advogado. Já o governo diz que a “gralha” no texto introdutório é depois corrigida no articulado da lei e que esta está “sem qualquer duvida, em vigor”.

Ainda de acordo com Miguel Pereira, a lei prevê um órgão colegial de três elementos, um deles com “voto de qualidade” para usar em caso de desacordo. “Porquê, se são três?”, interroga.

O advogado questiona ainda os poderes atribuídos pela lei a este órgão. “Três pessoas que vão acompanhar os orçamentos, aplicar as sanções, isto pode ser muito perverso”, acusa, defendendo que esta proposta de lei vai estar “completamente dependente das pessoas a nomear”. O governo defende-se e diz que é “para quando faltar um dos elementos”. Para o advogado, há que esclarecer quais os critérios de escolha do fiscal único. “Por concurso público, por nomeação?”, já que a proposta de lei não o refere. “São tudo coisas que podem ser aperfeiçoadas”, sublinha. Leitão Amaro diz que está expresso na lei, que é por nomeação.

O especialista aponta ainda outra falha: no artigo que prevê a extinção do FAM (15º) há uma remissão para o nº5 do artigo 19º. “Pois, este número 5 não existe”.

O secretário de estado, Leitão Amaro, lembra que o processo legislativo ainda não terminou. “O trabalho preparatório evoluiu, está no parlamento e está em discussão pública com a ANMP e o Tribunal de Contas. A proposta só está terminada no final do processo legislativo, que deverá ser em julho. E, mesmo depois, a lei prevê um prazo de 60 dias para retificar gralhas, nomeadamente em remissões”.